Piracicaba, palco iluminado de Kiyoshi (1)

Foi no auge de minha adolescência, em 1954, quando tinha 14 anos, que Kiyoshi Okawa, um japonesinho com carismas de anjos, apareceu em nossa vida.

O Brasil perdera mais uma Copa do Mundo, na Suíça, aumentando a frustração do trauma de 1950. Um dos nossos ídolos era o meia-esquerda Pinga, mas os locutores locais não podiam pronunciar o apelido, pois, em suíço, significa seio de mulher… A cidade de São Paulo parecia em êxtase permanente comemorando o IV Centenário. O menino Kiyoshi – adolescente, como quase todos nós, colegas, aos 14 anos de idade – encantava-se com tudo aquilo, como se estivesse em um palco iluminado. Mas estava em Piracicaba, vindo frequentar o Colégio Dom Bosco, preparando-se para ingressar na Escola Agrícola, ainda não conhecida como ESALQ, onde, em 1961, concluiu o curso de Engenharia Agronômica.

Kiyoshi Okawa chamava a atenção por seu tipo físico diferenciado, magrinho, olhinhos repuxados de japonês, sempre rindo como se o sorriso lhe escondesse a timidez. Quase nada falava, mas a tudo ouvia. Os colegas não o importunavam, mas, também, não lhe davam muita atenção. Tivemos, quase de imediato, grande empatia. Penso, hoje, que a timidez e o recato daquele nosso novo colega por algum motivo me convidavam a aproximar-me dele. Kiyoshi me olhava quase como que pedindo ajuda.

marca 100 anos japoneses

Nunca saberei se o pudor e a circunspecção japonesa dão origem, também, à timidez. Ou se esta é uma forma de recato, de respeito, algo como uma serena coexistência com a vida, com os bichos, com as plantas e verduras, com flores e passarinhos – e com o Outro.

O aparentemente frágil, silencioso Kiyoshi reunia, em si mesmo, tudo isso. A dele, era alma forjada na Ilha de Marajó, onde a família possuía propriedades rurais. Meu amigo era um nipônico que se plasmou também como marajoara. Ou o inverso, um marajoara japonês que transitava entre duas culturas singularíssimas. Ou, sei lá, foi minha condição de descendente de árabes que me levou à solidariedade das pessoas que sabiam ser bem recebidas, mas não aceitas. Kiyoshi, nissei – ou japonês, como o chamávamos – era, porém, mais do que um descendente de outros povos: Kiyoshi era japonês. Eu era o turco; Grisolia, o italianinho; Messias, o negrinho. Os Ferraz de Arruda e os Souza Campos tinham nome.

(continua)

Estes conteúdo e imagem foram retirados do livro “Centenário da Migração Japonesa em Piracicaba”, de Cecílio Elias Netto, em co-autoria com Ronaldo Victoria e Arnaldo e Arnaldo Branco Filho. Saiba mais sobre esta e outras obras publicadas pelo ICEN.

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