Piracicaba, palco iluminado de Kiyoshi (2 – final)

Monte Fuji_foto Japao Infotur

“Ele falava do Monte Fuji como se falasse de um deus. Ou de uma deusa. Kiyoshi Okawa me fez apaixonar-me por um Japão real ou imaginário nosso.” (foto: Japão Infotur)

Um dia, meus pais descobriram que Kiyoshi morava numa pensão humilde – numa rua que chamavam de meretrício, onde havia casas residenciais, pensões estudantis e bordeis. E que lá, além de ser ridicularizado – Kiyoshi recusava-se a “conhecer mulher”, a ter sua “primeira noite” – pouco ou mal se alimentava. Eu pouco ainda sabia – menos do que agora – mas meu pai via o povo japonês não como um adversário daquela ou de outras guerras, mas como vítima impiedosa do massacre dos Estados Unidos com a bomba atômica. Nos nossos almoços, meu pai, um maçom com cultura acima da média, falava dos erros de avaliação, da “história contada pelos vencedores”, odiando o extermínio de judeus pelos nazistas, mas enfatizando que os Estados Unidos haviam criado terríveis campos de concentração também para os japoneses.

Kiyoshi – vencendo a timidez e deixando-se convencer pela retórica quase furiosa de minha mãe árabe – passou a fazer suas refeições conosco. “Você está muito magrinho, tem que se alimentar melhor. O que sua mãe vai pensar disso?” Aos poucos, Kiyoshi começou a dormir em nossa casa, numa quase esteira estendida ao lado de minha cama. Pouco dormíamos, conversávamos. Até madrugada adentro. Enquanto eu fumava às escondidas, Kiyoshi vigiava, sem que, pobres tolos, soubéssemos que a fumaça e o cheiro do cigarro me denunciavam. Kiyoshi, o japonesinho, meu quase irmão…

Ele me contava coisas que me pareciam fantasiosas da sua Marajó, da floresta amazônica, dos animais, dos grandes espaços – sem, no entanto, nunca falar da própria família. E, com um sorriso como que de vontade, Kiyoshi me falava do que seus pais lhe narravam do Japão, daquela maneira de viver, de um país de tão pequenas dimensões, mas com uma história formidável, de heróis que pareciam os de cinema, de trabalho permanente, de belezas encantadoras, de cultura especial, de educação suave. Ele falava do Monte Fuji como se falasse de um deus. Ou de uma deusa. Kiyoshi Okawa me fez apaixonar-me por um Japão real ou imaginário nosso.

Estudávamos no Dom Bosco e, de imediato, ele se adaptou à disciplina dos padres salesianos. Mas, desde o princípio, revelou sérias dificuldades em línguas, em História e Geografia, em Filosofia, naquele emaranhado enciclopédico do ensino da empolgante década de 1950. Era, no entanto, um gênio nas matemáticas, na Física, no Desenho – disciplinas em que eu, este que vos escreve, era uma completa nulidade. Unimo-nos e nos tornamos orientadores um do outro. Eu fazia, para o meu querido amigo japonês, todas as tarefas, lições, trabalhos – e até mesmo provas, quando engambelávamos os mestres – dessas áreas. E ele salvava-me em todas as disciplinas em que a minha ignorância era plena.

Quando começo a escrever este livro sobre o centenário da chegada dos japoneses a Piracicaba, sinto-me estar com uma gente de cuja alma e espírito conheço belezas que me acompanham desde a adolescência. Kiyoshi Okawa – que nunca mais vi, que não sei se vivo ou morto, o Kiyoshi meu amigo, companheiro, irmão – vem-me, agora, à lembrança com uma força admiravelmente generosa. Neste livro, sinto sua presença, como tímida, mas brilhante, vela inspiradora.

Estes conteúdo e imagem foram retirados do livro “Centenário da Migração Japonesa em Piracicaba”, de Cecílio Elias Netto, em co-autoria com Ronaldo Victoria e Arnaldo e Arnaldo Branco Filho. Saiba mais sobre esta e outras obras publicadas pelo ICEN.

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