Preconceitos: a face triste

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NEGRA COM O FILHO, 1884 – Foto: Acervo Monsenhor Jamil Nassif Abib

Eis que retomo a secular realidade: “Quem ama, até o feio bonito lhe parece”. Ora, a cidade não é apenas um lugar de viver, de coabitação social, o teatro da vida com todos os seus dramas, tragédias e comédias. Além de tudo isso, para o homem, a cidade é mulher. Que conquista e quer ser conquistada. Não me canso de declarar-me um escriba irremediavelmente apaixonado por essa mulher, a “A Noiva da Colina” (Que recebeu, também, epítetos femininos: Atenas Paulista, Florença Brasileira, Pérola dos Paulistas).

Um apaixonado não vê defeitos naquela pela qual se apaixonou. Como haverei, eu, de discorrer a respeito do que possa ser alguma feiura? Desculpo-a ou tento justificá-la, pois quero, apenas, louvar e cantar a sua beleza, o seu esplendor. Por minha terra, sussurra-me com cítaras o coração. E trina, minha alma, com acordes suaves de harpa. Mas…

… não posso ser ingênuo como o dr. Pangloss ou a Poliana. Sempre houve – e ainda há, em menor escala – preconceitos. Os chamados raciais, étnicos, religiosos, por exemplo. Como sofreram e injustiçados foram os imigrantes desde o século 19! Eram os nossos “bárbaros”, de outras civilizações, línguas, religiões, culturas diferentes da nossa. E, para estarmos vigilantes evitando que isso se repita, eram famílias que vieram para ficar, para construir, para participar. E com que paixão ficaram, com que competência construíram, com que generosidade participaram!

Piracicaba – cidade e povo que sempre respiraram liberdade, que nunca deixaram aprisionar-se – jamais aceitou ser vítima, mas senhora de seu próprio destino. Apesar disso, durante o Império, fomos a terceira cidade paulista em número de escravos, logo depois de Bananal e Campinas: 5.663 escravos, numa população de 22 mil habitantes, conforme o “Almanak Commercial” de São Paulo, de 1.887. O Povoador Antônio Corrêa Barbosa, era “dono” – segundo Mário Neme – de cinco escravos, ainda em 1774, antes, pois, da fundação.

Zulmira e Zuleika

Posso, com alegria e rendendo graças, dizer ter nascido em família pobre, mas amante da cultura e da arte. Um lar feliz, apesar de tantas dores. Mas, com estranheza até hoje, lembro-me de preconceitos embutidos em meus pais, filhos de árabes. Eles, por suas origens, sofreram, também, muitas descriminações nesta terra maravilhosa. Assim como italianos, alemães, japoneses, judeus. Por isso, perguntava-me, a mim mesmo, como podiam, eles, ser tão preconceituosos – antes de acontecer nossas tragédias familiares e de cairmos na dolorosa pobreza – se eram quase todos negros os que nos auxiliavam na fabriqueta de doces sírios, na casa com tantos filhos?

Nunca mais me esqueci da gorda e espalhafatosa Zulmira, de sua lindíssima filha Zuleika, a, para mim, mais bela menina do mundo, de olhos imensos e sorriso, como então se dizia, de pérolas. Zulmira era, na primeira infância, minha protetora. E o cheiro dela, perfume de fêmea, o primeiro a me embriagar. E Zuleika, a namoradinha que eu queria ter. Meus pais tratavam-nas com carinho e respeito. No entanto, quando elas cometiam erros ou descuidos, falavam entre si: “Não adianta, isso é coisa de ábide”. Em árabe, ábide é plural de abid: negros, negro. Conforme meus pais o traduziam para nós. Mas, e Joãozinho e Zezinho, amigos meus, negros retintos? Eu os amava, confiança total neles, especialmente em Joãozinho, o João Feliciano.

Ele me pajeava, era meu pajem, como, à época, era hábito dizer-se. Levava-me ao jardim, às matinês, o sorridente e puro Joãozinho que – em anos inteiros da Segunda Grande Guerra – só esbanjou alegria? Ábides, eles? Para mim – sem me dar conta de estar também repetindo preconceitos – eram meus anjos da guarda, “anjos negros de alma branca”. Preconceitos são contagiosos, doença que se alastra, parecendo não ter cura…

Piracicaba – um Éden – testemunha, também, que cultura carrega seus próprios “daimons”, espíritos orientadores. Para o bem e para o mal. É uma história que precisa manter-se viva para que seus erros não se repitam.

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