Religiosidade: eclipse de Deus

*Artigo e fotos/imagens  retirados do livro “Piracicaba, a doçura da terra”, de Cecílio Elias Netto.

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Em todos os tempos, o ser humano viveu a sua religiosidade. Que, quando institucionalizada, ritualizada se torna religião. O homem da caverna já nasceu com espiritualidade e, por isso, ritualizou-se, adorando ou venerando os astros, em especial, Sol e Lua. Deuses foram entendidos de formas diferentes conforme as culturas e civilizações. Da religiosidade – entendida, também, como espiritualidade – nasceram as religiões.

Piracicaba foi fundada sob o signo do Catolicismo. Tanto assim que o primeiro vigário da povoação – e celebrante da primeira missa – foi o padre João Manuel da Silva, que precisou enfrentar os desmandos, arbitrariedades e escândalos do Povoador. O mesmo ocorreu com o seu sucessor, Frei Thomé de Jesus. São acontecimentos importantes – já relatados por nossos excepcionais historiadores – que servem, nestas páginas, apenas como indícios da religiosidade dos primeiros piracicabanos. Confesso, de minha parte, ver, nisso tudo, um misto de superstição, de religiosidade, de espiritualidade, de fome e medo do mistério, levado pela fé no sagrado que conduziu, porém, ao sincretismo. Pois a Igreja impunha a sua visão religiosa a todos os chamados “pagãos”. Índios e negros eram batizados e evangelizados quase que exclusivamente por imposição dos vigários do que por desejo próprio. Esse sincretismo abriu espaço para outras crenças, em especial as africanas. Pois – por medo e coação – eles submeteram-se à orientação da Igreja da época, mantendo, porém, ocultas, as suas crenças e rituais.

religiosidade1Conduzida pela carruagem da história, a Igreja Católica viveu altos e baixos, com sacerdotes fiéis e, também, com outros que se envolveram em negócios e em política. Isso tornou Piracicaba um campo fértil para a propagação de outros credos. E a demanda da fé – para se usar a linguagem da economia – permitiu o surgimento de denominações cristãs as mais diversas. Em 1875, fundava-se a Maçonaria que – mesmo não sendo religião, mas uma entidade filosófica – teve grande influência na política e na religiosidade dos piracicabanos. Os metodistas – apoiados pelos maçons – ergueram, em nossa cidade a terceira Igreja Metodista do Brasil, em 1881. Os alemães, guiados por Guilherme Stein, erigiram, em 1885, a primeira igreja adventista do Estado de São Paulo, a Adventista do Sétimo Dia. Em 1906, a professora Eugênia da Silva instalava o terceiro centro espírita em terras paulistas, “Fora da Caridade não há salvação”. A negra Maria Ventura, vinda do Rio de Janeiro, fundou a primeira igreja pentecostal piracicabana, depois denominada Congregação Cristã do Brasil. E, a pouco e pouco, outras denominações aqui fincaram raízes de forma que, no século 21, os chamados “evangélicos” não cessaram de criar capelas, templos, cultos. E as religiões africanas continuaram com grande número de fiéis nas sessões de candomblé, de umbanda, com seus pais e mães de santos.

Piracicaba tem, também, fiéis maronitas, ortodoxos, judeus, budistas, hinduístas, xintoístas. E, ainda que poucos, os que se dizem ateus. Confesso não entender como possa haver ateísmo em Piracicaba. Pois, aqui há que existir Deus ou deuses, tão evidentes as impressões digitais de um Criador, do divino. Basta, apenas, ter coração de ver e olhar, de olhar e enxergar. Como não captar o sagrado, o divino materializado, quando as águas – nossa pia batismal – rolam nas pedras do Salto, ou provocantemente eróticas nas espumas que se oferecem para ser sugadas?

E quando as árvores – como se agradecendo aos céus – bailam à suave canção de nossas brisas? E as flores, acariciando-se entre si, mesmo quando “o cravo briga com a rosa?”

Como simples contador de histórias, não entendo, já que acabei aprendendo algo fundamental: a vida é prosa, no trabalho e na faina do cotidiano. Mas é poesia no sonho, na esperança e na aceitação dela própria, no mundo e em cada hora. Um “eclipse de Deus” – expressão usada por Martin Bubber – é transitório como todo o eclipse. Deus se esconde para não ver horrores…

Há uma observação de Espinoza que parece explicar essa busca coletiva da religiosidade: “A ideia concreta da realidade está no amor”. E é tal amor, muitas vezes difuso, que se espalha em nossas festividades religiosas: a quase sesquicentenária Festa do Divino, entre sagrada e profana, tendo o rio como berço e caminho; a de Santo Antônio, o Padroeiro, com seu bolo gigantesco; a de Nossa Senhora dos Navegantes, ainda sobre as águas; procissões da Semana Santa e de Corpus Christi; a festa de São João, em Tupi, envolta em superstições, fé e alegria; os mistérios do candomblé, venerando Iemanjá nas espumas do Piracicaba, onde a Senhora dos Navegantes também é reverenciada e tantas outras demonstrações comunitárias de espiritualidade.

Uma das singularidades de Piracicaba, ainda no campo religioso, está, também, em nossos feriados municipais. Em vez, por exemplo, de ser feriado no dia da fundação, 1º de agosto, a celebração se dá no dia do Padroeiro da cidade, Santo Antônio, a 13 de junho. E é também feriado – como em algumas poucas outras cidades – uma tradição vinda de Portugal: o da Imaculada Conceição ou de Nossa Senhora da Conceição, em 8 de dezembro. O culto à Virgem Maria é cada vez mais avivado, com recitações familiares de terços, o “terço dos homens” e a consagração de Nossa Senhora dos Prazeres – também orago do primitivo lugarejo – daqui expulsa, segundo a lenda, e substituída por Santo Antônio.

Sombras sobre a cidade

Duas afirmações deveriam servir-nos para meditações profundas, especialmente em nossa realidade hodierna, neste século 21, espalhador de confusões e perplexidades. A primeira, de Nietszche, famosa, mas parcialmente divulgada: “Deus está morto”. Sim, ele o disse, mas completara: “Nós o matamos”. Na segunda metade do século 19, pois, o filósofo vira esse eclipse de Deus na humanidade. Um eclipse causado pela ambição humana. E ainda não recuperado, após o colapso de guerras e ódios do século 20, que prossegue nestas primeiras décadas do novo milênio.

A outra, também célebre, é de Dostoievski, pronunciada por Ivan, no livro, também célebre, “Os Irmãos Karamazov”: “Se Deus não existe (ou está morto), então tudo é possível”. Ora, se Deus ou os deuses não existem, não haveria razão superior – a não ser para ajudar-se a si mesmo – para criarem-se civilizações milenares, como as do passado e de nossos dias, a busca da fraternidade, da solidariedade, da paz. Seria cada um por si, nem NINGUÉM para todos.

Ora, ser humano tem que ser entendido em seu contexto histórico. E os piracicabanos assim, também, devem ser entendidos. A velocidade incontrolável das transformações e mudanças não pode ser contida. Assim, confunde-se pressa com velocidade: quando temos fome, queremos velocidade de quem nos prepara a comida; mas não queremos pressa quando comemos. O mundo da tecnologia é, ao mesmo tempo, veloz e tem pressa. E isso nos perturba a todos. E confunde.

No mundo fragmentado, Piracicaba e os piracicabanos também vivem um eclipse de Deus, conhecendo essas sombras sobre a Terra. Assim, temos vivido uma noite de expectativas, não de esperança. Há, nos espaços, algo de que nada sabemos, a não ser de que seu verdadeiro espaço é a comunidade. No lugar do individualismo, a solidariedade já renasce. Como que redescobrimos o fato de o mundo ser uma hospedaria, abrigando as mais diferentes personalidades e, inevitavelmente, levando-as a reconhecer que o EU há que conviver com o OUTRO. Mesmo não o querendo.

A religiosidade do “homo piracicabanus”, pois, vem das lonjuras, de mais de 200 mil anos, de nosso avô “homo sapiens”. Todos, no passado e ainda agora, vivendo a angústia de Deus e de deuses, o divino que é uma influência não vista, mas criadora de impacto sem dimensão. À religiosidade de nossa gente, resta – entre tantas reveladoras lições – a sabedoria do Talmud: “Tudo começa e termina com um mistério”.

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