Saberes Tradicionais (2)

Conceitos e percepções

O médico neurocirurgião Raul Marino Jr. relata em seu livro “A Religião do Cérebro”, que a anatomia do cérebro humano abriga regiões capazes de atuar como tipos de “antenas que captam as vibrações de Deus”, por meio de crenças, fé, religiões. E analisa: “Durante muitos anos, a ciência tem negado a existência da gnose do espírito ou de qualquer tipo de inteligência que transcenda o domínio material (…). Isso não quer dizer que a espiritualidade começa onde a ciência termina, pois, como veremos, ambas concorrem para uma busca do real, em que ciência e religião se completarão em um abraço grande e íntimo, em uma nova visão de mundo”.

Neste mesmo contexto, a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha entende que os saberes tradicionais e científicos são diferentes formas de compreender e atuar no mundo. Em uma de suas participações em reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC (julho/2007) ela citou o antropólogo Evans-Pritchard, que demonstrou que “não há lógicas diferentes; o que há são premissas diferentes sobre o que existe no mundo”. Manuela complementa com outro antropólogo, agora Lévi-Strauss: “a ciência moderna hegemônica usa conceitos, a ciência tradicional usa percepções. (…) Enquanto a primeira levou a grandes conquistas tecnológicas e científicas, a lógica das percepções, do sensível, também levou a descobertas e invenções notáveis e a associações cujo fundamento ainda, talvez, não entendamos completamente”.

Declarações internacionais e políticas nacionais

A Declaração da “Conferência Internacional Sobre Cuidados Primários de Saúde” (Alma-Ata, na República do Cazaquistão,1978) foi dirigida a governos de todo o mundo e a entidades como a Organização Mundial da Saúde – OMS e o Fundo das Nações Unidas para a Infância – UNICEF, entre inúmeras outras. O documento tem sido considerado a primeira declaração internacional a enfatizar a importância da atenção primária em saúde, e reconhece o trabalho de parteiras, auxiliares e agentes comunitários, assim como praticantes tradicionais. Outro documento internacional, “Parteiras Leigas” (Genebra, 1992), declaração conjunta da Organização Mundial da Saúde – OMS e o Fundo das Nações Unidas para a Infância – UNICEF e Fundo de Populações das Nações Unidas – FNUAP, afirma e recomenda a participação das parteiras para a melhoria da assistência ao parto e nascimento.

No Brasil, os saberes tradicionais na área da saúde estão considerados em, pelo menos, duas diferentes políticas do Governo Federal: “Política nacional de plantas medicinais e fitoterápicos” e na “Política Nacional de Práticas Integrativas Complementares em Saúde”, que busca integrar medicina tradicional e terapias alternativas, também incluindo plantas medicinais. O Ministério da Saúde, por meio de seu Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher, também lançou, em 1994, o “Manual Diretrizes Básicas de Assistência ao Parto Domiciliar por Parteiras Tradicionais”.

Institucionalização do parto

Silveria

Silvéria Santos, coordenadora de pesquisa e orientadora técnica do projeto “Parteiras Tradicionais do Distrito Federal e Goiás”.

Silvéria Santos, coordenadora de pesquisa e orientadora técnica do projeto “Parteiras Tradicionais do Distrito Federal e Goiás”, conta que, na América Latina em geral, a institucionalização do parto aconteceu a partir da Segunda Grande Guerra, na década de 1940. Foi quando a prática do partejar saiu de dentro da casa e foi para a instituição (hospitais, postos de saúde, entre outros).

O desenvolvimento da medicina obstétrica partiu, no entanto, da observação das práticas tradicionais e dos comportamentos das parturientes assim tratadas. Com assertividade, esses saberes tradicionais foram descritos, sistematizados e aprimorados e muitas conquistas da ciência impactaram positivamente na prevenção da morte materna e fetal. Silvéria destaca a importância dos avanços científicos na obstetrícia, mas chama a atenção para uma questão de gênero: eles foram liderados, predominantemente, pelo referencial masculino, que não incorporou as mulheres – embora tenham sido elas a matéria-prima desse saber, como as “primeiras profissionais da obstetrícia na história da medicina”.

E atenta, ainda, para a ênfase atribuída às situações de risco e de patologias na gravidez, que exigem medicalização e tecnologias; em detrimento ao parto humanizado. Ela explica, citando estudo feito pela Organização Mundial da Saúde – OMS, entre as décadas de 1960 e 70, em diversos países do mundo, em várias faixas de população. “O estudo mostrou que o risco enfrentado pelas gestantes em geral está entre 8 a 15%. Sejam elas as mulheres famintas da Etiópia ou as mulheres instruídas dos grandes centros urbanos do mundo. Isso significa que somente este percentual de gestações necessita de tecnologia especializada – em função do que foram desqualificadas as práticas humanizadas de cuidado com o processo fisiológico mais natural, tão bem representadas pelas parteiras tradicionais”.

(continua)

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[Estes conteúdo e imagem foram retirados do livro “Mulheres Semeadoras de Cultura”, co-autoria de Cecílio Elias Netto, Arnaldo Branco Filho e Patrícia Fuzeti Elias. Saiba mais sobre esta e outras obras publicadas pelo ICEN.]

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