Saberes Tradicionais (3-final)

Onde estão as parteiras?

Olhar para os saberes tradicionais na área da saúde é, também, reconhecer as raízes da cultura do Brasil e América do Sul: indígena, africana, europeia. As práticas revelam diversas crenças e valores, gerando seu próprio sincretismo.

Sincretismo que, também, se mostra na conexão com a espiritualidade e no colocar-se a seu serviço: “Eu achava muito bonito, muito bom esse dom que Deus me deu, que é ajudar para dar aquela vida! Muito bonito esse dom que Nossa Senhora me deu”, diz Dona Tionília, parteira tradicional da cidade de Cristalina de Goiás – GO.

Dona Tionflia é uma das 55 parteiras tradicionais, doulas, benzedeiras e raizeiras registradas no levantamento feito para o projeto “Parteiras Tradicionais do Distrito Federal e Goiás: reconhecimento da arte e oficio do partejar como Patrimônio Cultural Imaterial no IPHAN e na Rede Certific” – apoiado pela Secretaria Especial de Políticas para Mulheres – SPM, sob a orientação de Silvéria Santos, enfermeira parteira, aposentada como professora-doutora do Curso de Enfermagem da Faculdade de Saúde da UnB.

“O mais gratificante desse trabalho foi a oportunidade de procurar, reconhecer e dar visibilidade a essas mulheres, de reavivar nelas a identidade do poder desse saber e dessas experiências. Porque estamos no franco desperdício das experiências”, ressalta Silvéria, citando o professor português Boaventura de Sousa Santos.

Entre os pontos comuns identificados pela pesquisa com as diversas parteiras entrevistadas, ela ressalta o compromisso assumido com a comunidade onde estão inseridas e, principalmente, com o sagrado: “Na fala de todas elas transparece o fato do ‘dom’ não ser uma opção, mas, sim, uma missão divina conferida a elas”. Compromisso que se expressa no “receber e disponibilizar o dom recebido”, num gesto de reciprocidade que contribui para gerar diversos tipos de alianças nos relacionamentos, incluindo cumplicidade e solidariedade.

Silvéria considera que as parteiras sejam as grandes representantes da humanização dos partos, modelo de padrão de respeito ao parto fisiológico, natural, abordando a mulher como ser multidimensional (biológico, afetivo-emocional e sociocultural) – considerando o ambiente em que a mulher se insere, suas relações, seus hábitos alimentares, a dimensão espiritual, entre tantos outros aspectos.

E são muitas as práticas envolvidas – orações e cantos de rezas, bênçãos, ervas para preparo de chás e banhos, simpatias e evocações, toques e posições — a compor o repertório daquela que prepara a chegada das crianças a este mundo. Um chá, não é apenas um chá, explica a enfermeira: “A parteira prepara o chá, conhecendo os princípios amoroso, inteligente e espiritual daquela erva e da mãe terra que gera essa erva, que favorece em tantas coisas a condição de cada mulher que ela assiste”.

Dona Tionília

Tionilia

Dona Tionília, parteira da cidade de Cristalina de Goiás. (foto: Renato Café)

Tionília de Oliveira Santos nasceu em 1938 na Bahia, mas mudou-se para Cristalina, em Goiás, aos 11 anos. Para chegar até lá, a família viajou a pé, durante um mês de caminhada. Sua mãe, no entanto, não se adaptou e a família retornou à Bahia. Mas a menina Tionília gostou da região e voltou definitivamente a Cristalina pouco tempo depois – mas, desta vez, de caminhão pau-de-arara.

“Minha mãe era parteira, mas ela não me ensinou. Tinha uma comadre minha, grávida, eu fui ver, quando eu cheguei lá ela me pediu ajuda, o menino nasceu na hora que eu cheguei. Eu ‘tava’ com 23 anos, foi o primeiro parto que eu fiz. Fiz um curso de parteira de três dias, com as irmãs [freiras], mas eu não seguia, não (…) Tinha mulheres que eu ia fazer o parto e elas não tinham nada, nem para comer, nem para a criança. Quando a mulher não tinha casa, não tinha lugar para ir, eu trazia para ganhar nenê aqui em casa. Graças a Deus ninguém morreu em minha mão. Nunca uma mulher que eu acompanhei levou um corte, nunca estraguei a vagina de a uma mulher, (…) As outras parteiras que tinha aqui já morreram, só tem eu agora”.

Dona Tionília atuou como parteira por quase 50 anos e foi homenageada pelas autoridades locais – numa rara demonstração de reconhecimento: uma placa da Prefeitura Municipal de Cristalina em valorização ao seu trabalho e o Hospital Municipal batizou suas salas de parto com o nome de Dona Tionília e de Vó Leonina, outra parteira tradicional da cidade.

Chás e banhos

A parteira conta que para ajudar no momento do parto, ela dava banhos de água com sal, de folha de beladona* e de folha de mastruz**. “Eu também dava um ovo cozido quente, para esquentar o corpo da mulher. Dava chazinho, dava banho, fazia massagem com óleos. Durante uma semana após o parto, eu dava chá de folha de algodão para tirar a infecção de útero da mulher. Eu sou da religião católica, eu só rezava a Salve Rainha”.

E se emociona: “A coisa mais linda do mundo é quando a criança nascia, aquele choro da criança quando nascia. Tem criança que eu peguei que é vereador, tem advogado, tem professor”.

*Beladona (Atropa belladonna): indicado para relaxar os músculos, além de aliviar dores de cólicas urinárias e da vesícula biliar. É eficaz, ainda, no alívio de crises de asma, problemas no sistema nervoso ou problemas de digestão específicos. A beladona é tóxica e possui diversos efeitos colaterais, quando usada sem supervisão.

 **Mastruz (Chenopodium ambrosioides): a Organização Mundial da Saúde considera como uma das ervas mais utilizadas entre os remédios tradicionais no mundo inteiro. Seu principal componente ativo é o iodo, além de outros como as vitaminas A, C e do complexo B. Possui cálcio, ferro, fósforo, zinco e potássio. Planta versátil, auxilia no tratamento da rouquidão, câimbra e até problemas respiratórios. Vários povos nativos também usam o chá da planta para *facilitar o parto e aliviar a menstruação dolorosa.

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 [Estes conteúdo e imagem foram retirados do livro “Mulheres Semeadoras de Cultura”, co-autoria de Cecílio Elias Netto, Arnaldo Branco Filho e Patrícia Fuzeti Elias. Saiba mais sobre esta e outras obras publicadas pelo ICEN.]

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