Bigos polonês

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Bigos

Esse texto foi publicado em agosto de 1988 no semanário impresso A Provincia. Recuperamos para lembrar os 30 anos de atuação em Piracicaba.

A familia Gerdes surgiu, cresceu, expandiu-se a partir de um fogo, o altar-mor do sumo sacerdote Romeu Gerdes, o mais famoso e lembrado de todos os cozinheiros piracicabanos, um deus da culinária que os “maitres” de hoje ainda reverenciam. Dona Nair Gerdes seguiu-lhe os passos, tão apurada cozinheira quanto o marido. E os filhos, ah! os filhos, eles vão tentando… Estão todos gordinhos, de tanto que tentam: René, Ronaldo, Rosny e Rivaldo, todos eles se dizem cozinheiros, continuando na esteira do sacerdote-mor, Romeu Gerdes. 

os melhores pratos. Ninguém esquece, por exemplo, a alcachofra recheada dele. 

— E Vossa Excelência, dr. René, é tão bao quanto ele? — pergunta a reportagem especializada de A PRÓ, o mais famoso jornaleco do Brasil. 

René dá uma risadinha, olha prá Sally, a esposa. Taca a mão na barriga, suspira: 

Hoje (domingo) eu fiz um nhoque que, óia, nem te conto… Puta nhoque macio, meu! Nhoque de batata com molho de osso-buco, óia… Num quero sê contadô de papo, mas que puta nhoque macio, meu! 

A esposa concorda, embora reticente. René sussurra, emperligando-se para dar a entrevista sobre um de seus apreciados pratos: 

— Ela tá um inveja di mim. Eu só meió cozinheiro do que ela… Eu sei fazê um bigos polonês, meu, que, óia, num tem prato iguar… 

— Bigos polonês? ta a reportagem de A PRÔ, o mais completo jornaleco do Continente. — O que é isso, meu? 

— Puta merda como ocê é ingorante, não? Entao ocê num conhece o bigos polonês? É uma feijoada que num tem feijão… 

Feijoada que não tem feijão, é mole? 

Prolegômenos 

A reportagem confessa-se cética. Se é feijoada que não tem feijão, por que não se muda o nome do tal do prato? Só falta cozinheiro piracicabano inventar o “arroz doce” sem arroz… O repórter pergunta: 

— Isso não é coisa, não, do Elpídio Roberti, do Perina, do Miguelãoo Sansigolo? 

Renê Gerdes se ofende, o orgulho alemão subindo-lhe à face. Controla-se para não explodir: 

— E ocê acha que o Elpidio, o Miguelão, o Perina, quarqué tranquera de otros cozinheiro que tão por ai vão sabê fazê o Bigos Polonês? 

A reportagem do jornaleco de maior circulação do Brasil tenta acalmar o cozinheiro, perguntando-lhe se não reconhece virtudes e qualidades nas pessoas citadas. Renê alisa a unha do dedo mindinho, dá uma mordidinha e, com ar distraido, fala: 

— Óia, até que eles dão pro gasto. O Miguelão até que faiz uma feijoada mais ou meno, mai ele tem mania de inventá. O Perina é mais ou menos bom em peixada, mai se estrepa todo quando vai fazê carne. O Elpidio… Eu e o Elpídio, nóis faiz troca-troca de receita tuda veiz que a gente se encontra no mercado ou lá na esquina da rua Governador. O puchero do Elpidio até que podia sê bào, mai nenhum deles sabe fazê o Bigos Polonês do jeito que eu faço, aposto quanto eles quisé.

O Bigos Polonês 

Segundo o dr. Renê Gerdes, é assim que se faz o Bigos Polonês, a tal da feijoada sem reijao, é mole? Vamos lá: 

— É que nem feijoada mai num é feijoada. É na base de chucrute. Se ocê num subê fazê chucrute (V. receita em seguida), compre duas lata ou dois saquinho, que também tem chucrute vendido em saquinho plástico, falô, seo ignorante? Dai, pegue duas cebolas das grandes cortadas em rodelas, mas em meia-rodela, sabe como é? Num sabe? Então, ocê pega a cebola, corta pelo meio e, depois, ocê corta em rodela, entendeu? Pegue quatro costeletas  

A reportagem de A PRÓ — o jornaleco mais “sexy” do País — interfere: 

— Mai como é que tá pronto, dotor? E como é que faiz? 

— Óia, ocê é mai ingnorante que eu pensava, puta merda! Mai num tem pobrema, vamo lá. Taque a cebola na panela só até “loirá”. Depois, taque as costelas na panela prá “dourá”.

A reportagem interrompe novamente: 

— Qual a diferença, doutor, entre “loirá” e “dourá”? 

— É tudo a mema coisa, seo burro. Num encha o saco! Daí, 

de louro, taca as seis sarchicha — mai da Éder, num esqueça, falô? taca a costeleta defumada, taca todos os ingredientes na panela, tudo bem cortadinho. Dai, poe água até cobrir tudo. Dai, deixa prá cozinhar durante 45 minutos. 

— E dai? — pergunta o repórter, fascinado com a feijoada sem feijão. 

— E dai tá pronto prá comê, ué. Acompanha cerveja, fica bão que ocê num acredita. Óia, qué que eu faça um proce comê? 

A reportagem fica em dúvida. Deixa para outro dia. E, quanto ao chucrute, Renê Gerdes dá a receita: 

— Se ocê num quisé comprá chucrute, faça. O Perina até que sabê fazê maizomeno… Pegue uma vasilha, taque uma camada de repolho, depois taque uma camada de sal. Depois, outra camada de repolho, depois outra de sal. Vai tacando: uma de repolho, outra de sal. Vai tacando até que encha a vasilha. Depois, taque em cima um prato prá comprimir, amarre, deixe ficá uns 15 dias curtindo. Daí, tá pronto. 

— E o repolho não estraga?

— Ô, seo burrão. Chucrute é repolho que ficô fermentado, qual é, meu? 

Humilhada, a reportagem já se ia retirando, quando Sally, a esposa do notável cozinheiro, sussurra: 

— O sonho dele, quando aposentá, é abrir um restaurante que já tem até nome: “Só cozinho o que eu quero”. 

— Num vai sê bão? — pergunta Renê. 

E a reportagem fica pensando no restaurante do Renê Gerdes, anunciando o prato do dia: “Fei •oada sem feijão”. Eu, hein?

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