Lili, nossa primeira motorista

O texto abaixo foi publicado em janeiro de 1988 no semanário impresso A Província. Relembrava que, em 1918, Lili havia sido a primeira mulher a dirigir na cidade. Preservamos datas, idades, comentários e gramática originais do texto.

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“Se o ditado popular de que mulher no volante é um desastre é verdadeiro, eu não sei. Só sei que me realizo num carro, adoro dirigir e nunca sofri um acidente de carro.” Quem diz isso é Valentina Nogueira Toledo, 87 anos, a primeira mulher a tirar carta de motorista em Piracicaba. “Dirigir é a coisa mais fácil do mundo.”

Lili Nogueira, como é carinhosamente conhecida, tirou carta de motorista em 1918, apoiada pelo pai Ridrigues Augusto Alves Nogueira, fazendeiro. “Papai fazia todas as minhas vontades e como ele gostava muito de carros, me ajudou. Ele sempre me dizia: ‘ ‘Lili você é louca por automóveis.” Hoje, ela guarda sua paixão pelo carro no coração e tem muitas recordações sobre as viagens que fazia. Dirigiu o corcel 76, que está guardado na garagem de sua casa com 25 mil quilômetros rodados, até há 4 anos e só sai com ele quando um de seus sobrinhos resolve passar em sua casa para levá-la a passear.

Não dirige mais o carro porque sofre de reumatismo agudo e sente dores em todo corpo. Com dificuldades para andar, passa a maior parte do tempo deitada. “Tem dia que choro de dor e não é luxo, porque não fui criada no luxo.” A vida de Lili Nogueira sempre foi a de uma mulher ativa. Ajudava o pai a administrar a fazenda, alimentava os animais (sua primeira paixão) e sempre estava com o seu cavaIo Monroe, com quem corria de dia e de noite pelas terras da família. “Você não sabe o que fui na vida. Esse malvado reumatismo é que me deixou assim.”

Mas antes do reumatismo a castigar, Lili Nogueira fez tudo o que tinha vontade. Foi até jockey, disputando corridas na raia particular da fazenda, com os amigos. “Meu cavalo era lindo, azulado e me encontrava sempre. Ele rondava a fazenda até me encontrar e quando conseguia encostava no meu rosto e me mordia. Era uma demonstração de carinho.”

Lili Nogueira mora sozinha numa casa no centro da cidade. É viúva do médico Luiz Gonzaga de Campos Toledo, dr. Lula. Não tem filhos e dedica toda sua atenção à filha da empregada, que tem 8 anos. Está querendo vender seu carro, mas sente “um aperto no coração” quando pensa nisso. “Às vezes, vou até a garagem só para olhar para ele. Ele é lindo. Tudo nele é original.”

O primeiro carro que dirigiu foi o NSU, de 1918, importado da Alemanha, com sete lugares. “Papai conseguiu comprar usado, de um senhor que morava em Limeira.” Na época, o carro custava 7 contos de réis. “Era um dinheirão”, diz. Na cidade quase não havia automóveis, apenas os carros de praça (carros cobertos com toldos e puxado a cavalo). “Os fiscais eram turrões”, lembra-se.

A saudade mata 

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Os cabelos de Lili são muito brancos e sempre estão presos. Seus pés são muito inchados, tanto que os sapatos chegam a machucá-los. “Hoje, estou como Deus quer”, diz. A saudade que sente de sua juventude “me mata” e, por isso, tenta transformar as recordações como ponto principal de sua vida. “Eu tinha um pai e uma mãe que me adoravam. Não queria mais nada na vida. Só não gostaria de ter saído da fazenda. Não nasci para ficar na cidade. Aqui tem muita maldade.”

Lili já teve derrame acuoso e sente um pouco de dificuldades para se lembrar “de tudo na minha vida”. Recorda-se que tinha muitas amizades “e por onde andava era abraçada, queriam conversar comigo,” Muitos destes amigos que compravam carros chegaram até a pedir que ela o dirigisse. “Eles queriam que eu o conhecesse e desse minha opinião. Eu guiava qualquer tipo de carro,” explica.

Quando se sentava no banco do motorista, sentia como se o carro a guiasse. “Era ele quem me dirigia” e afirma “quantas vezes eu não desci do carro para por corrente nas rodas e tirá-lo do barro”. Seu pai vivia dizendo pelos cantos da casa; “Ela tem coragem de um leão”. E ele a apoiava em tudo. Bastava Lili sonhar com alguma coisa que o pai executava. A única coisa que não conseguiu fazer foi ser aviadora. “Os documentos estavam todos prontos, mas minha mãe não deixou.”

Porém, essa proibição não a deixou chateada. Continuou a fazer o que gostava: correr a cavalo e dirigir. “Eu dirigi durante 64 anos e nunca bati num carro”. Parou de guiar aos poucos, para poder se acostumar com a separação. “Estava vendo que precisava deixá-lo.” A única coisa que faz até hoje e não pretende parar é ajudar o Lar dos Velhinhos. “Aprendi com meu pai que deveria olhar pelos velhos, porque ninguém gosta de velhos e eu visito o Lar desde criança”. Para ela, sua vida “está encerrada. Não saio sozinha pela cidade. Estou sempre dentro de casa.”

Lili Nogueira quando está sozinha conversa com as plantas, sua terceira paixão, cultivando-as com muita atenção. “As plantas sempre estão perto de mim, ao meu alcance e são minhas amigas.”

Leia também recordações do trânsito em Piracicaba no ano de 1987.

 

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