Idoso busca reconhecer cemitério de negros escravos em Piracicaba: ‘depois eu posso morrer’

[reproduzimos, a seguir, texto de Caroline Giantomaso, publicado no “G1 Piracicaba e Região”, em 20/novembro/2019. Acesso pelo link: https://g1.globo.com/sp/piracicaba-regiao/noticia/2019/11/20/piracicaba-foi-3a-cidade-com-mais-escravos-no-estado-diz-historiador-idoso-busca-reconhecer-cemiterio.ghtml ]

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José Mariano busca construção de memorial em praça onde era cemitério de escravos em Piracicaba. (foto: Caroline Giantomaso/G1)

Reconhecimento da história dos negros é um dos maiores desejos de “Seo” José Mariano, um idoso de 84 anos de Piracicaba (SP). Em busca da construção de um memorial onde há mais de um século era um cemitério de escravos, hoje ele caminha devagar por conta da idade avançada e de um tratamento de saúde recém-finalizado. Mesmo assim, não desanima: “só depois que eu fizer tudo aqui, eu posso morrer”, disse.

De acordo com o historiador, ativista e membro do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba (IHGP) Noedi Monteiro, o local do cemitério se chamava Praça Boa Vista, por conta da vista que dava para o Rio Piracicaba e para a Rua do Porto, hoje pontos turísticos do município. Lá, os escravos eram enterrados, essencialmente os membros da Irmandade São Benedito, grupo da igreja frequentada por negros na época e que fica a um quarteirão do cemitério.

“Só membros da irmandade eram enterrados ali. Quem era da região rural tinha outros cemitérios espalhados, alguns eram enterrados nos terrenos das fazendas mesmo e colocavam uma cruz em cima para marcar”, afirmou.

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Câmara de Vereadores de Piracicaba prova existência de cemitério em praça, onde hoje funciona escola. (foto: Arquivo Câmara de Vereadores de Piracicaba)

O primeiro registro do cemitério foi encontrado em uma ata da Câmara de Vereadores datada de 1824. O documento diz sobre a construção do local. Depois disso, foram citadas outras vezes até a construção e municipalização do novo cemitério em 1872, que depois foi chamado de Cemitério da Saudade, como é conhecido até hoje.

Segundo Monteiro, todos os corpos foram transladados para o novo cemitério, mas a praça nunca foi reconhecida como cemitério, mesmo mais de cem anos depois. A Boa Vista virou Praça Tibiriçá e lá foi construída uma unidade de ensino, hoje Escola Estadual Morais Barros. O prédio é tombado patrimônio histórico em âmbito estadual e municipal.

Não há fotos ou gravuras da praça na época em que era cemitério. Também não se sabe ao certo quantos escravos foram enterrados ali por conta da falta de registros da época. Apesar disso, Piracicaba é a terceira cidade em número de escravos do Estado de São Paulo, segundo o historiador.

Foram 5.339 até o ano de 1887. Essa é a quantidade que foi registrada na coletoria do município no período, onde os barões e moradores pagavam taxas de acordo com suas posses. “Mas nem todos eram registrados”, completa, o que significa que esse número ainda pode ser maior. As outras duas cidades são Campinas, com cerca de 14 mil escravos, e Bananal, com 6 mil, de acordo com dados apurados pelo historiador.

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Prédio do Grupo Escolar Morais Barros em 1986. (foto: Arquivo Câmara de Vereadores de Piracicaba)

A falta de reconhecimento do local leva José Mariano a buscar um memorial. “Mas eu não estou lutando sozinho, eu tenho muito apoio”, garantiu. Ele citou que é apoiado por membros do legislativo municipal, por ativistas e historiadores. O idoso comentou também que não faz isso por capricho próprio, mas pela história da cidade.

Isso não vai me valorizar, vai valorizar a cidade. Para mim, com quase 85 anos, o que vou esperar?

 Monumento ideal

Quando questionado pelo G1 como imagina o memorial pronto, a primeira palavra que José Mariano disse foi “flor”. Depois de uma pausa, justificou: “como vou ser cremado quando eu morrer, quero que minhas cinzas sejam jogadas aqui. Já estou até com os vasos de flor prontos para plantar.”

A homenagem aos antepassados não termina aí. “Eu gostaria que fizesse uma capelinha”, contou. No entanto, disse que sabe que não é simples. “Precisa ver se tem condições de fazer isso.”

Nesse caso, as “condições” citadas por José Mariano são as autorizações necessárias para construção. Por ser um prédio tombado como patrimônio estadual e municipal, é proibido construir em um raio de 50 metros.

De acordo com o historiador, já há um projeto na prefeitura para estudar se há possibilidade de construção do monumento pedido por Seo Mariano. O G1 entrou em contato com a administração, mas nenhuma das pastas contatadas souberam dizer em que fase o projeto está.

Irmandade São Benedito

Monteiro disse que a Câmara de Vereadores também cita a Irmandade São Benedito em um documento de 1824, mas que não há como saber exatamente o ano de surgimento do grupo. Hoje, o único membro é justamente Mariano.

Segundo ele, a construção do memorial é uma das intenções, mas também é necessário reconhecer a igreja de São Benedito como sendo propriedade da irmandade. O prédio hoje é tombado como patrimônio histórico municipal. “O negro tem o direito de lutar pelo direito que é seu. Na própria Constituição consta o direito à terra”, argumenta.

Até hoje o local permanece sem registro. “Como que uma igreja que não existe pode ser tombada?”, questiona.

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Igreja São Benedito em Piracicaba, ano desconhecido. (foto: Arquivo/Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba)

Meu maior pedido até agora é que Piracicaba reconheça o direito do negro

Além desse, enfatiza mais um: “O que eu quero é que não viva brigando. Vamos ter uma união, vamos ter um momento em que o branco e o negro estejam de mãos dadas, ao invés de viver brigando. Você acha que Deus está contente de nós estarmos brigando aqui?”, questiona. Segundo ele, a melhor maneira de chegar até uma solução é o diálogo.

José Mariano é tão firme em seu desejo que já chegou a viajar até São Paulo (SP) apenas com o dinheiro da passagem de ônibus para tentar conseguir informações ou documentos sobre a igreja São Benedito. “Fiquei o dia todo lá e só fui ‘almoçar’ oito horas da noite”, lembra. Nesse dia, não encontrou nenhum registro.

Mesmo assim, não deixa de ser devoto:

Para mim, tudo que eu estou conseguindo, que eu estou conquistando, é graças a São Benedito

Tempos difíceis

Durante o período em que o idoso esteve doente, precisou focar no tratamento e recuperação e acabou deixando as questões referentes ao memorial e à irmandade em segundo plano. “Só que eu não deixei totalmente, uma coisinha ou outra eu estava aqui”, brinca.

Mariano teve que fazer uma cirurgia e passar por um tratamento complexo. Teve suspeita de câncer, mas não entrou em detalhes. Disse que recebeu a notícia que estava curado nesta segunda-feira (18). Agora, pretende se alimentar bem para ficar forte novamente e conseguir continuar em busca do memorial e do reconhecimento da igreja.

A partir de segunda-feira, eu estou começando minha vida de novo

Os planos para o início da vida nova envolvem a fé e começam já nesta quarta-feira (20). José Mariano pretende ir até Aparecida do Norte (SP), após as comemorações do Dia da Consciência Negra em Piracicaba, para assistir a missa de quinta-feira (21) de manhã na Basílica de Nossa Senhora Aparecida e visitar a igreja de São Benedito de lá.

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