Maria Helena e Heleninha, o outro lado da medalha (1)

Era uma vez duas meninas que gostavam e gostavam de jogar bola. Com elas, valia até o futebol. Mesmo que fossem meninas. Talvez por isso, ainda hoje, quando se fala nelas, as pessoas sempre estarão a relacioná-las a uma quadra de basquete, a bola que falou mais alto. No apartamento, um painel especialmente projetado, mostra que elas dominaram a bola, e os troféus e medalhas se acumulam. Mas o mundo de Maria Helena e Heleninha, artífices das maiores vitórias internacionais do basquete feminino brasileiro, foi muito além disto. A bola exigiu, durante anos, sacrifícios, jornadas de trabalho de mais de 14, 16 horas. A maioria, vivida em Piracicaba. Almas gêmeas, ou irmãs siamesas numa outra vida, como elas mesmas insinuam, Maria Helena e Heleninha tornaram público apenas um lado desta vida. Mas e o outro? O reverso da medalha?

Pouco mais de cinquenta anos atrás, quando Maria Helena Cardoso nasceu, em Descalvado, há quem diga que já existia uma bola debaixo do berço. Era uma família de esportistas: pai e irmão jogadores de futebol a nível de seleção, irmã mais velha na seleção de basquete. E a jovenzinha, desde cedo, foi mascote do time da cidade, quis seguir a mesma rotina dos atletas da famflia.

Com apenas alguns anos de diferença – dois, mais precisamente – nascia em São Vicente, uma outra menina. Que gostava do esporte, mas que só acabou numa quadra de basquete porque uma garota do time que estava se formando perdeu a mãe no dia do jogo. A garota tímida sequer sabia que era basquete, ela gostava, mesmo, era de jogar barrabol, uma espécie de queimada. O brilho na quadra foi tão imediato que, a partir daquele dia, ela foi titular incontestável. Já naquela partida, um velho senhor chamou a garota e lhe perguntou o nome. “Maria Helena”, respondeu-lhe então. Mas o velho senhor mirou-a bem, considerou que ela era muito miudinha e decidiu: “Você tem que ser Heleninha”.

E Heleninha explodiu antes de Maria Helena. Na verdade, Heleninha se transformou no ídolo de Maria Helena, que começava, então, em Descalvado, passando depois para o Pinheiros de São Paulo. Sempre com um objetivo: jogar em São Vicente, o time de Heleninha. Viajando para São Paulo, a rotina era sempre a mesma: fazer o cunhado, de caminhão, levá-la para ver o time de Heleninha na quadra.

Mas as coincidências que iriam fazê-las as grandes companheiras começaram muito cedo. A primeira partida oficial de Maria Helena teve que ser adiada, porque ela foi acometida por uma crise de apendicite. A de Heleninha, a milhares de quilômetros, por causa de uma nefrite.

E devia estar escrito mesmo: o convívio começou em Piracicaba. Na noite em que se inaugurava o Ginásio Municipal Waldemar Blatkauskas, Heleninha era a grande estrela de São Vicente. E Maria Helena defendia São Carlos. Daí para a seleção, em 1957, o caminho foi rápido. E daí para Piracicaba, mais rápido ainda. Heleninha transferiu-se de Sorocaba para cá. Maria Helena veio do Pinheiros. E aí, talvez, comece realmente a história de ambas, não a história contada e recontada de títulos locais, estaduais, nacionais, internacionais. Mas a história de luta, de sobrevivência, de cansaços e de um amor, por Piracicaba, que parece que não se acaba…

Professoras de parque infantil

Quando ambas chegaram a Piracicaba para a montagem de um time feminino – já que o masculino vivia seu momento de glória – ainda estavam distantes os tempos do profissionalismo esportivo. Maria Helena passou a morar com Heleninha e seus pais. “Ter 17 anos naquela época era ser criança e só consegui permissão para vir para cá porque iria morar com uma família”, lembra Maria Helena.

lado domestico

Maria Helena vivia com Heleninha e os pais, logo após transferir-se para Piracicaba. Na foto, o lado doméstico de ambas, em 1956.

É certo que a cidade gostava das atletas, mas o salário só vinha com trabalho. Ambas davam aulas de Educação Física num parque infantil da Prefeitura. Carro não havia, então era ir de bonde até o Ginásio ou então correndo mesmo, “fazendo preparação física”, como elas mesmas gozam, lembrando os velhos tempos. Foram seis anos de trabalho duro, dando aulas, às vezes, para rapazes quase que da mesma idade. Dispensa, só em época de jogos oficiais. Depois, foi o concurso para o magistério na rede estadual. Maria Helena escolheu “cadeira” em Osasco e Heleninha, em Cotia. Então, a rotina era outra: viajava-se uma ou duas vezes por semana, dava-se aula e de novo Piracicaba para os treinos. Veio a transferência e então as aulas eram dadas na Usina Costa Pinto. E veio a Casa do Bolinha, uma loja montada pela necessidade que ambas viam de garantir sua subsistência, de ter outras fontes de renda. Porque o amor por Piracicaba já começava a acontecer, a se manifestar, tanto que, nos anos 60, o Flamengo tentou levá-las com um salário que daria para comprar o carro do ano – um Fusca, diga-se de passagem – e elas preferiram ficar.

Por quê, a pergunta mais natural possível?

E aí começaram os relatos muito pessoais, cheios de emoção, de sentimento. Maria Helena se diz uma pessoa conservadora, que necessita de amigos, de raízes. HeIeninha completa que o dinheiro não é tudo e que, no início, o exemplo de Pecente estabelecido na cidade fora uma segurança. Mas os fatos mostram, mesmo, que elas se sentiam, desde muito cedo, amadas pela cidade, pelo povo.

Ambas se recordam que, quando ainda professoras do parque infantil municipal, o então prefeito Salgot Castillon desejou efetivá-las após uma significativa vitória no basquete. Sabedor de que não poderia fazê-lo porque outras professoras tinham mais tempo de serviço do que ambas, não hesitou: nomeou e tornou efetivas todas.

Depois, veio a remoção, como professoras, para Piracicaba. Já não era possível se conciliar as aulas em Osasco e Cotia e os treinos em Piracicaba. E entraram as pressões favoráveis dos políticos locais, entre os quais elas mencionam nominalmente Domingos José Aldrovandi. E, através de um decreto especial do então governador Adhemar de Barros, ambas foram removidas para Piracicaba.

Aconteceu então, a vontade de montar uma loja comercial. Mas o único “ponto” disponível na rua Governador era um velho casarão, quase em frente a atual Portalarga, que não podia ser reformado, porque uma lei municipal exigia que, no local, isto só poderia ocorrer com prédios de, no mínimo, três andares. As duas procuraram pelo então prefeito Luciano Guidotti, que assinou uma autorização especial. Como, então, ambas já tinham um Fusca cada uma, venderam um deles, conseguiram capital e montaram a “Casa do Bolinha”.

(Continua)

Esta matéria foi originalmente publicada no jornal impresso “A Província”, na edição de 10 a 29/agosto/1991. Para conhecer o texto na íntegra, acompanhe a TAG MariaHelena Heleninha.

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