O homem que guarda defuntos

O texto abaixo foi publicado em novembro de 1987 no semanário impresso A Província. Preservamos datas, idades, comentários e gramática originais do texto.

 homem-foto

Terno, cachecol, guarda-chuva, chapéu e um saco de pano com jornais velhos. E assim que Geraldo Amaral Campos, 61 anos, anda pela província, indo de velório em velório todos os dias. Sua missão: cumprir a promessa que sua mãe fez quando ele era criança, acreditando que poderia curá-lo dos ataques que sofria pelo sistema nervoso.

Hoje, Geraldo mora no Lar Betel e sua maior alegria é quando um asilado morre, para poder dar banho no defunto, guardá-lo à noite e cuidar de seu enterro. “Ele, então, acorda cantando, alegre e conversa com todo mundo”, diz a assistente social da entidade, Maria Isabel Schiavani.

Geraldo, porém, não é maldoso, não acredita em espírito mau e seu único medo são os vivos. “Eu tenho medo dos vivos, tem muito ladrão por aí”. Lúcido, cabelos grisalhos, olhos verdes (mas vesgo) e mastigando sempre, não admite que as mulheres do asilo olhem para ele. “A única mulher que olhou para mim foi minha mãe”, diz.

Forte e alto, Geraldo não tem noção de tempo, e não deixa de freqüentar os três cemitérios da província — vai a pé, porque não gosta de andar de ônibus — e, logo de manhã, já sabe quais são os velórios que têm defuntos. Quem o ajuda são os outros velhinhos do Lar Betel, que lhe dizem quem são os mortos do dia e chegam até a escrever num caderno o nome do morto, data e local do velório e enterro.

O caderno é o diário da vida de Geraldo. Nele estão todas as suas preocupações, suas visitas e anseios. Há nomes de mortos ricos e pobres, conhecidos e desconhecidos. Um nome que chama a atenção é de Marcos Freire, que morreu num acidente de avião. “Morreu hoje o ministro Marcos Freire que estava num  avião, que explodiu”. Outro nome que chama a atenção é do industrial Armando Dedini. “Faleceu hoje, dia 16 de abril, Armando Dedini. Seu sepultamento é amanhã às 17 horas, saindo de sua residência na rua Santo Antônio, próximo ao centro.”

Geraldo não conheceu Armando Dedini, mas tem uma crítica. “Eu conheci ele depois de morto. Tentei entrar na casa dele e não deu. Era muito luxo. Fui só no cemitério.” Ele fala que seu caderno é recordação dos amigos mortos e tem letra de muitas pessoas — algumas já estão mortas.

Prazer na obrigação 

Geraldo nunca pensou em desistir da promessa de sua mãe. “Agora, eu já peguei o rumo e tenho que ficar”, diz. Não se lembra de quantos anos tinha quando a mãe fez a promessa. “Era idade que vai no grupo”. Quem ensinou a promessa à mãe de seu Geraldo foi uma mulher que ele não conheceu. “Ela só falou que se eu acompanhasse os velórios, eu não ia mais ter ataque e ia sarar”.

Na época, morava em Jaú e veio morar na província, “quando tinha bonde na cidade”. O cemitério que ele mais gosta é o da Saudade, porque lá estão enterrados seus pais. “Eu vou todos os dias no túmulo deles”. O dia que mais gosta é Finados, porque tem “bastante gente e flores no cemitério”. E ele vai nos três, mesmo que não tenha enterro.

Devoto de São Benedito, Geraldo tem dois irmãos “e nenhum amigo”, como fala. Usa roupas e objetos de defuntos que ganha dos parentes dos mortos. E usa com muita honra. “Eu ganhei, porque não vou usar?” pergunta. Faz questão, ainda, de guardar todos os santinhos que recebe nas missas de sétimo dia e nos velórios. Esses santinhos ficam num saco plástico que coloca no bolso do paletó.

Frequentar os velórios é uma obrigação e se tem alguém “gozando” dele, simplesmente ignora. Não gosta de brincadeiras e fica triste e irritado quando acorda e é informado de que não há enterros naquele dia. Sua melhor lembrança é quando os mortos eram velados em casa. “Eu guardava defuntos a noite toda e dava banho neles, também.”

Hoje em dia, Geraldo não guarda mais defuntos à noite. Ele deve voltar ao Lar todos os dias às 17 horas, quando fecha, para jantar e dormir. É um homem querido dentro da entidade, onde faz pequenos serviços, como levar o lixo na rua. Não tem nenhuma tarefa extra e nunca trabalhou. Tudo isso para cumprir a promessa de sua mãe: acompanhar todos os enterros.

 

Deixe uma resposta