Velhos natais da infância

 

Sofro de angústias de Natal. O doloroso de tudo – ou o problema estaria nisso? – é que os natais de minha infância foram lindos, feitos de ternura e de gestos amoráveis. Minha mãe era uma princesa árabe, mimada como herdeira de um trono. Mas ela se apaixonou por um marceneiro também descendente de árabes, meu pai. Ele, talhador de madeira e pastor de cabras e tocador de violino; ela, a herdeira de uma herança de tradições e de riquezas.   O amor foi mais forte do que a herança. E a princesa e o marceneiro fugiram para se casar. Amaram-se e passaram fome. Meus irmãos e eu fomos nascendo desse amor fantástico, amor muito mais antigo do que os cantador por Shakespeare, amor das histórias de Sheerazade. Os olhos de meu pai eram azuis como manhãs límpidas; e os de minha mãe, negros como noites abismais, pintalgadas de estrelas. Havia romance nos olhos de meus pais. E, quando os meus avós perderam a fortuna, toda a fortuna que ficou foi aquele amor. E foi tanta essa fortuna que, quando minha mãe morreu, meu pau, pouco tempo depois, morreu de amor e de saudade no túmulo dela. Eis minha herança: o amor.
Escrevo essas coisas por causa do Natal. Foram lindos demais os natais de minha infância. Minha mãe, princesa sem fortuna, dava encantamento a tudo em que tocava. Ela era capaz de rir da pobreza em que vivíamos. Mas, na mesa de almoço e de jantar, os simples pão e banana eram servidos como se fosse um banquete. Havia guardanapos para se comer pão com banana ou feijão com farinha. É estranho: pobreza rimava com nobreza. Isso parece ser possível apenas onde existe um amor irracional. Como deveriam ser todos os amores. Ou, pelo menos, os amores que busquei. Pois minha herança foi o amor incondicional de meus pais. Hoje, tenho certeza: eles se amavam mais um ao outro do que a nós, seus filhos. Minha mãe sempre nos falava: “amo muito vocês, mas amo mais o seu pai.” E ele, meu pai, insistia: “amor todos vocês, mas, entre os filhos e a sua mãe, fico com sua mãe.” Fico com inveja.

Houve natais em minha infância. Meu pai era Papai Noel, fazendo brinquedos de madeira com as duas próprias mãos. E por isso que, ainda hoje, insisto em dizer que acredito em Papai Noel. Ele era meu pai. E minha mãe, uma fada ou uma bruxa, conseguindo transformar em “noite feliz” a noite de Natal de nossa pobreza. A árvore de Natal era um arbusto qualquer que, na noite especial, se iluminava dessas velas de sebo compradas no armazém da esquina. A vela cortada em pedaços transformava-se estrelas luminosas de uma noite de Natal. E havia o presépio, feito de miolo de pão: José, Maria, Jesus, outras figuras deformadas mas lindas, à luz dos tocos de velas.

E havia a oração de Natal. É isso o que, talvez, explique minhas angústias. Meu pai e minha mãe nunca se mostraram religiosos. Eles não nos falavam de Deus, nem de Jesus. Meu pai era maçom, minha mãe, uma liberal, talvez feminista para o seu tempo. No entanto, na Noite de Natal, meu pai e minha mãe se ajoelhavam. Diante do presépio, pediam que todos nos déssemos as mãos e oravam. Eles teatralizavam o “Pai Nosso”, compungidos, como se orassem a um deus misterioso. E o terrível era a Ave Maria. Meus pais – nunca falando de Jesus – eram dominados por algo mágico e tocante, tecido por ternura e enlevos, quando falavam de Maria, a Santíssima. Não consigo explicar, mas eu também – criancinha ainda – me deixava conduzir por aquela magia. Meus pais estavam dizendo sem que eu soubesse: “Se Maria é a Mãe e Deus, ela é maior do que Deus.”
Cresci. Perdi-me de mim, nessa dor de ficar adulto. Meus natais passaram a ser vazios, feitos de carências e de angústias. Agora, viajando por dentro de mim, fico pensando na Maria que – acima de qualquer deus ou filho de deuses – meus pais contemplavam, liberais que eram. Maria é mãe. Não estaria aí, talvez, toda essa angústia de Natal? Comemoramos um filho que nasce, esquecidos da mãe que o gerou… Não seria isso? Não sei. Neste Natal, prometo-me pensar mais seriamente na mãe que deu à luz esse filho. Estranhamente, sinto que posso ter um Natal mais feliz.

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