As ilustrações do “Bagaços da Cana”
Lera o “Um Eunuco para Ester”, mas como simples funcionário d’O Diário’, não imaginara que seu autor me colocaria em mãos um livro inédito. Pedi e recebi o livro “Bagaços da Cana” do Cecílio, um calhamaço de páginas escritas à máquina, com anotações nas margens. Naqueles tempos de 1973, ainda freqüentava o atelier de Clemência, na Rua do Rosário, onde li o romance e quis ilustrá-lo, apenas como prazer de artista, porque a leitura me trazia na mente imagens muito vivas. Debaixo dos olhos de Clemência, terminei leitura e desenhos, quase ao mesmo tempo. Clemência se lembrou disso e escreveu a meu respeito:
“Acompanhando a série de ilustrações para o livro “Bagaços da Cana”, de Cecílio Elias Netto, aprendi a conhecê-lo melhor no extravasar da alma, no sentimental e afetivo trabalho a envolver cenas do livro, interiorizado, a desabrochar, renascer e reavivar com expressivo realismo. (…) Da mesa de trabalho nascem seus personagens, como ele mesmo, representados por sua natureza rica em espiritualidade, gráfico em sua prática e envolvente em seu sentimento.”
E Cecílio, após ver os desenhos, me agradeceu dedicando-me um belo “Bom Dia”:
“… algum tempo atrás, o Araken me pedira para ler os originais de um livro que eu escrevera, “Bagaços da Cana”, que estava empoeirado, esquecido, abandonado em uma gaveta qualquer. Dei-lhe os originais. Passados dois ou três meses, o Araken me fez uma surpresa: “estou ilustrando seu livro!”. Fiquei lisonjeado e, ao mesmo tempo, curioso para ver os trabalhos do Araken. Pensei que sairiam ótimos… Mas confesso que levei um impacto, que foi uma espécie de pancada na nuca o que senti quando bati os olhos nos primeiros trabalhos. Porque o Araken, à simples leitura do romance conseguira captar, conseguira sentir, conseguira sofrer exatamente tudo o que eu sentira e sofrera ao escrevê-lo. Não me foi preciso pestanejar para identificar os personagens e a situação em que viviam.”
No dia primeiro de abril de 1974 coloquei a público os desenhos que fizera para o livro do Cecílio e outros trinta, na Casa das Artes. Exposição inédita, porque aquele recinto abrigava exclusivamente o Salão de Belas Artes. No catálogo, J. M. Ferreira escrevia sobre as obras da exposição:
“Esta é a segunda apresentação que faço para uma individual de Araken. Por isso, me é difícil ver a exposição atual sem considerar a anterior, em 1969, na Galeria Sempre Viva. E é de certa forma surpreendente que o indisciplinado formalismo abstrato das xilos de 69, com suas massas escuras à procura de uma forma, misturadas com supostos ideogramas, tenha produzido este desenho tão claro e sinuoso, transparente mesmo, implicando numa decidida opção pela figura humana, por rostos e expressões, especificamente, que me parece será ainda por algum tempo o material de trabalho deste jovem artista. Um desenho carregado de sensualidade e vitalidade nasce em meio a uma impressão de liberdade que não é produto do acaso, mas vem de um traço seguro e firme. Harmonioso como uma melodia.”
Ao ver, hoje, as ilustrações do “Bagaços da Cana”, sinto que o Cecílio tinha razão ao dizer que o livro transmitia “pureza e miséria, lirismo e drama, simplicidade e complexidade, paz e violência, amor e ódio. Enfim, um mural onde pretendia fixar a época controvertida de uma gente tangida pelo medo, mas fortalecida pela esperança.”
E ainda, com poucas ressalvas, gosto delas.