A terrível estória da “polenta com sangue de Cristo”

O texto abaixo foi publicado em junho de 1988 no semanário impresso A Província. Recuperamos para lembrar os 30 anos de atuação em Piracicaba.

causos

Quando se fala com dona Itália Pieroni sobre o famoso “Causo da polenta com sangue de Cristo”, sua reação é imediata. Arregala os olhos, logo a seguir vira as costas e evita tocar no assunto. “Isso Já aconteceu há muito tempo e eu não gosto de me lembrar”. E fica inútil insistir. “O que passou, passou, eu quero esquecer que isso aconteceu”. Também, ela foi a protagonista do causo, foi ela a primeira pessoa a ver o sangue que surgiu não se sabe de onde. E tudo ocorreu na mesma casa no bairro Dois Córregos onde vive até hoje, o fogão a lenha que usa agora foi o mesmo onde foi cozida a famosa polenta.

O “causo” aconteceu há mais de 40 anos. Na época deu o que falar, gerando comentários por todo bairro. A notícia correu de boca em boca. E não adianta tentar saber alguma coisa com as pessoas que chegaram a presenciar o fato. Seo João, por exemplo, que ainda é seu vizinho, diz que chegou a ver tudo.

“Realmente, quando ela cortava a polenta, de repente começava a verter sangue”. Só que afirma não saber de mais nada, indicando outra pessoa. Seo Mário, o indicado, confirma tudo, mas com a mesma reticência. “Eu cheguei a ver, foi uma coisa impressionante, ninguém até hoje sabe explicar”. E não diz mais nada, afirma que a idade vai chegando e faz com que se esqueça um pouco das coisas.

Parece que o “causo” foi realmente impressionante, tanto que quem viveu ou quem presenciou, se recusa a tocar no assunto ou prefere não entrar em detalhes. Pois a história da “polenta com sangue de Cristo” envolve diretamente fatos ligados ao misticismo, à religiosidade e ao sobrenatural. Mas como a tradição popular de se alimentar oralmente as grandes histórias permanece, o “causo” continua vivo para muitas pessoas que não o viram, mas ouviram contar como quem escuta uma história do outro mundo. Descontadas algumas diferenças de pessoa para pessoa, a versão mais corrente para o “causo” é a que se segue.

SANGUE DE CRISTO

Tudo aconteceu numa sexta-feira santa. Naquele tempo, o costume pedia que as famílias se abstivessem de comer carne durante todo o período da Quaresma, obrigação que era principalmente exigida nesse grande dia. Alguns chegavam a jejuar na sexta-feira santa, mas isso não era muito comum. Pelo menos contam que dona Itália não resolveu agir assim, fez uma polenta, seguindo uma tradição da descendência que leva no nome.

Só que, de manhã, tinha combinado com o marido, que trabalhava com compra e venda de animais, que ele é quem se encarregaria de trazer para casa alguma coisa para acompanhar o prato principal, a famosa “mistura”. Mas quando o marido chegou, percebeu que ele tinha se esquecido, não trouxe nada para casa. Reclamou com ele. “E agora, a gente vai comer polenta a seco, o que a gente vai fazer de mistura?”.

Não se sabe se o marido estava bravo naquele dia, mas contam que ele respondeu de forma ríspida. “Por mim você faça com qualquer coisa, tempere com o sangue do Cristo se você quiser”. Ao ouvir isso, ela ficou bastante assustada e disse: “Por lavor, não diga isso, não presta falar essas coisas num dia como o de hoje, alguma desgraça pode acontecer”.

Foi para a cozinha bastante nervosa e ficou pensando no que o marido disse. Estava se preparando para servir a polenta sem nenhum acompanhamento, quando de repente, alguém bateu à sua porta.

O VISITANTE 

Foi atender e quem estava lá era um homem moreno, de barba e cabelos compridos e olhos claros. À primeira vista, seria um mendigo, mas ele não estava maltrapilho e nem sujo. Disse para ela que estava de passagem e pedia alguma coisa para se alimentar. Nervosa como estava e sentindo confiança no homem, disse que não poderia ajudá-lo e recomendou que batesse nas casas da vizinhança, que certamente alguém lhe daria um prato de comida.

Contou para ele a história da polenta sem mistura e o homem respondeu: “Não se desespere, o corpo do Senhor alimenta a quem tem fome e o seu sangue semeará a vida dos que sofem”. Se despediu e foi embora.

Ela voltou para dentro da casa, colocou a polenta sobre a mesa para o almoço, mas quando foi cortá-la teve uma incrível surpresa: um fio de líquido vermelho começou a escorrer, tingindo o amarelo. Sua primeira reação foi dizer que era sangue.

Lembrou-se então do homem e foi correndo para a rua para ver se ainda o encontrava. Ele havia sumido. Procurou por todas as casas vizinhas, mas ninguém o tinha visto. Voltou para casa pensando que havia sofrido uma alucinação, mas cortando outra vez a polenta, o sangue aparecia novamente.

Fez outra polenta e o fenômeno se repetia. Partiu para outras experiências, fazendo o alimento na casa das amigas, mas em outros lugares a coisa não acontecia, era apenas onde morava. O bairro inteiro ficou sabendo da história e muitas pessoas iam para lá. Alguns diziam que era o sangue de Cristo que estava presente, em resposta à blasfémia do marido, que levantou seu nome em vão e principalmente numa sexta-feira santa. Os mais exaltados acreditavam que o homem que bateu à sua porta seria o próprio Cristo ressuscitado.

Foram vinte dias de grande agitação, em que não se falou de outra coisa no lugar, até que repentinamente parou de acontecer. Mas na época ninguém se lembrou de fazer uma análise para saber o que realmente era aquele líquido vermelho e o que tinha havido de verdade. Passados tantos anos, o que sobrou de tudo é um grande mistério. Mistério que certamente ainda vai continuar por muito tempo como se quem viveu e presenciou o fato quisesse no fundo se esquecer ou apagar da lembrança.

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