Negritude, marca indelével na cultura caipira

É redundância dizer que o Brasil tem uma dívida irresgatável para com os negros, um dos pilares da raça brasileira, talvez o vértice do triângulo completado por índios e europeus. Mas é preciso dizê-lo. Há um resgate a ser feito. E um ritual de respeito a ser cobrado. Pois o Brasil se fez mestiço.

Quando o presidente Fernando Henrique Cardoso disse “ter um pé na cozinha”, ele  pareceu ter, ao mesmo tempo, revelado orgulho e  preconceito: orgulho da mestiçagem brasileira; preconceito de ainda entender a “cozinha” como lugar de serviçais da família. Ironicamente, a  condescendência   intelectual do ex-presidente nada mais fez do que institucionalizar o que já estava revelado: a “cozinha brasileira” é, fundamentalmente, resultado da presença negra.   Tal e qual nas artes em geral, na música em especial. E  na literatura, nos esportes, na política, no folclore, na religião, em toda a vastidão da cultura, talvez de maneira ainda especial na chamada cultura caipira, na qual a influência negra é preponderante.

Perversidade

O Brasil, como país escravagista, foi – pelo menos estatística e historicamente – o mais perverso de todos os países das três Américas. E –desgraçadamente para a nossa história – também no mundo escravizador de negros.  Bastam-nos alguns números e datas para nos instigar à reflexão sobre a mancha que ainda não se apagou, segundo estudos do historiador piracicabano Noedy Monteiro. Vejamos:

SUPRESSÃO DO TRÁFICO DE ESCRAVOS:
1- No Brasil, o tráfico foi interrompido em 1850:
2- Na Dinamarca, em 1792; na Inglaterra, em 1807; nos Estados Unidos, em 1808; na Espanha, em 1815; em Porto Rico, em 1836.

ABOLIÇÃO DA ESCRAVATURA:
1- O Brasil foi o último país do mundo a renunciar ao regime de escravidão, em 1888;
2- No Haiti, a abolição se deu em 1804; no Chile, em 1823; na Argentina, em 1832; nos Estados Unidos, em 1865.

No Brasil, o primeiro dos Estados – que, então, eram denominados de  Províncias – a abolir a escravatura foi o Ceará, em 1884. Em São Paulo, as três principais cidades escravagistas foram Campinas, Bananal e Piracicaba.

Escravos e imigrantes

No século XIX – a partir de 1820, até 1890 – o Brasil acolheu cerca de 988 mil imigrantes, destacando-se, entre muitos outros, portugueses, italianos, espanhóis e  alemães.
A acolhida de africanos – negros, tornados escravos – foi muito maior. Os primeiros negros escravizados chegaram, ao Brasil, entre 1576 e 1600. Foram, então, cerca de 50 mil escravos. Ao se chegar ao ano de 1850 – quando foi proibido o tráfico de escravos – o Brasil tinha a marca infamante de, até então, ter buscado e acolhido cerca de 1.800 milhão de escravos.

 Negros célebres

O Brasil deve, aos negros afro-brasileiros, os principais fundamentos da nossa raça. Infelizmente, porém, essa negritude tem sido esquecida ou, conveniente e propositalmente, relegada a plano inferior. No entanto, os negros são pilares da civilização brasileira, ainda que as mais novas gerações percebam a excelência da negritude quase que apenas nos esportes e na música. Negro, no Brasil, está mais vinculado a corpo e ao lúdico das pessoas do que à inteligência e à razão. Vai daí, o respeito à negritude   tem sido concessão que a raça branca faz  a celebridades como Pelé, Garrincha, Didi, Djalma Santos, Agostinho dos Santos, Adhemar Ferreira da Silva, Elza Soares, João do Pulo, Coutinho  – todos eles, astros da indústria do entretenimento, antes e agora.

No entanto, a raça negra tem nomes fundantes da cultura e da civilização brasileiras. Alguns dele, entre muitos outros não citados:

INTELECTUAIS – Gonçalves Dias, Machado de Assis, Lima Barreto, Tobias Barreto de Menezes, Mário de Andrade, Cruz e Souza, José do Patrocínio,  Luiz Gama, Gonçalves Crespo, Abdias do Nascimento, José Rebouças, Antonio Pereira Rebouças;

MÚSICA –  Ângela Maria, Antônio Pitanga, Ataulfo Alves, Bispo, Assis Valente, Belmonte, Blecaute, , Clara Nunes, Clementina de Jesus, Ciro Monteiro, Djavan, Dona Cleuza e dona Ivete Lara, Zica da Mangueira, Donga, a família Caimmy, Elizete Cardoso, Elza Soares, Gilberto Gil, Grande Otelo, Heitor dos Prazeres, Ismael Silva, Jamelão, Jackson do Pandeiro, Jorge Benjor, Milton Gonçalves, Milton Nascimento,  Leci Brandão, Luiz Gonzaga, Lupícinio Rodrigues, Mansueto, Martinho da Vila, Nélson Cavaquinho, Padre José Maurício, Paulinho da Viola, Pixinguinha, Silvio Caldas, Solano Trindade, Orlando Silva, Sinhô, Tim Maia, Wilson Batista, Wilson Simonal, Zé Kéti, Zezé Mota,Xisto Bahia, Benjamim Malaquias de Oliveira;

ARTES PLÁSTICAS – O Aleijadinho (Antonio Francisco Lisboa), Bispo do Rosário, Pinto Bandeira, Manuel Araújo Porto Alegre, Crispim do Amaral, Estêvão Roberto da Silva, Valentim da Fonseca e Silva;

PROFISSIONAIS LIBERAIS – Joaquim Cândido Soares Meirelles, Alfredo Casemiro da Rocha, Manoel Maurício Rebouças (médicos), os engenheiros Irmãos Rebouças (André, Antônio e José).

RELIGIOSOS – Padre Francisco de Paula Victor, Padre José Maurício Nunes Garcia, Bispo Dom Pelé, Dom Silvério Gomes Pimenta.

Estes, apenas alguns do grande número de negros que marcam a cultura brasileira, também com presença crescente na política.

  “Dragão do Mar”, uma lenda

Os negros, no Brasil, sempre tiveram figuras míticas, das quais o Zumbi dos Palmares é, talvez, a mais cultuada. No entanto, há uma personalidade negra que se tornou verdadeira lenda no Nordeste brasileira, o “Dragão do Mar”, um jangadeiro que protagonizou situações épicas no Ceará. O nome dele: Francisco José do Nascimento, o “Chico da Matilde”. Ele, com sua jangada, carregava escravos para ajudar a libertá-los, orientava outros jangadeiros no mar, era líder abolicionista.

Diz a lenda que o “Dragão do Mar” saiu com sua jangada de Fortaleza até o Rio de Janeiro para pregar a abolição, sendo aclamado por onde passava. No entanto, parece que ele foi de navio até a baía da Guanabara, onde arriou a jangada ao mar. Mas se tornou lenda viva da abolição.

 Erro de Ruy: queima de arquivos

Os grandes feitos de Ruy Barbosa em defesa do Brasil  não conseguem apagar um erro criminoso: a queima dos arquivos históricos sobre a escravidão. Ruy – em 14 de dezembro de 1890, como Ministro da Fazenda – querendo “destruir os vestígios” da escravidão, “instituição funestíssima”, determinou que todos os documentos sobre a escravidão no Brasil fossem enviados ao Ministério da Fazenda. De lá, foram destruídos na “casa de máquina da Alfândega”.

Para “apagar a mancha da escravidão”, Ruy Barbosa foi responsável pela destruição dos mais importantes documentos da história do escravagismo brasileiro.

1 comentário

  1. Vardir Chamma em 07/09/2012 às 12:10

    Excelente artigo de uma página da História Brasileira tão negligenciada por nossos historiadores. Como diz Cecílio, a escravidão, embora abolida em 1888 (século XIX) não conseguiu eliminar os preconceitos, ora sutis ora explícitos, que ainda se sucedem. Relato o fato acontecido no hipermercado Carrefur em Campinas ontem. Uma funcionária negra foi agredida físicamente e através de nomes pejorativos. Ela acionou a polícia e o preconceituoso foi levado à delegacia. Estamos no século XXI. Essa crônica, ao mencionar o "Dragão Negro", remete à música "O mestre Sala dos Mares" de João Bosco e Aldir Blanc. "Salve o navegante negro que tem por monumento as pedras pisadas do cais. Mas faz muito tempo…"

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