A Sabedoria do Jeca


Sei que também é astuto: um expert, no ensinar;
Na faculdade da vida o danado se formou;
Seu livro foi a enxada, que depressa assimilou.
Certa vez, num lugarejo bem distante da cidade,
Onde a tranquilidade estava feliz a reinar;
Onde os belos passarinhos lá nas árvores da floresta,
Alegres fazendo festa, ao Jeca estavam a cantar;
E ele, com ar tristonho, pensando em sua amada,
Dedilha o pinho num sonho esta tão triste toada:

JECA – Quéro contá prá vancê nêstes vérso di amôr;
Exprimi o meu sofrê, i tôda a minha dôr;
Quar pedrêro da florésta traído pôr sua amada,
Cânto ésta móda funésta com minha vóis embargada […]

Enquanto o Jeca canta, vai chegando um doutor,
Num terno de casimira; na lapela uma flor;
Com português donairoso, falado com muita graça,
Pensando que o caipira não sabe brindar a taça;
Vindo num tom enfático o aristocrata despeja
Vocabulário catedrático que causa até inveja;
Falando de música clássica, orquestrada e popular,
Querendo a sertaneja do caipira desdenhar.

DOUTOR – Prezado amigo do campo, quero agora te falar
De John Lennon, Paul Mc Cartney, George Harrison e Ringo Star,
Que juntos formam os Beatles, e ora estão a brilhar;
Garotos de Liverpool, cidade da Inglaterra,
Cantando o yê, yê, yê, dos States até Canberra,
Enlouquece os corações dos jovens de toda a terra.
Ouviste falar de Glenn Miller, Chopin, Verdi e Bethoven,
Dos quais os veros sábios, suas músicas eternais ouvem,
E com toda reverência: existe alguém que os louvem?
A linda Amada Amante do meu amigo Roberto?
A Rita e a Banda do Chico, que fazem sucesso por certo?
Alegria, Alegria, do Caetano, amigo esperto?

O Jeca, que não é bobo, com seu jeito matreiro,
Lá no Luar do Sertão, fala de Chico Mineiro;
O almofadinha garboso o caipira tanto instiga,
Porém, logo se depara com um difícil enigma.

JECA – Seu môço diga agóra, si o sinhô fôr capaiz
Di um animar isquizito, qui em suma é veraiz;
Será qui as suas lêtra vai podê mi retorquí;
Quem é êle, seu doutô? Deixi o sabê fluí;

Quar é o animar, qui di mânhã têm quatro pé; ao meio-dia dois pé i a noitinha, gerarmenti têm trêis pé?

Vá matutando, seu doutô!
Vá matutando!…

O cidadão pensou tanto, mas não pode elucidar;
A sua massa encefálica parece que ia gretar;
O enigma era intrincado: dificílima resolução,
Que a soberba do moço bateu de cara no chão;
O caipira foi dizendo com jeito todo educado,
Não perdendo as estribeiras, e mandando seu recado.

JECA – Seu doutô, êsse animar, qui paréce tão isquizito,
As vêis si tórna horrendo, mêrmo sendo tão bonito;
Estôu falando do hóme, animar qui fala i pensa,
Criado a imagi di Deus, di importâncea inmensa.
Fiqui carminho, seu môço, num isquenti a cachóla:
A isplicação do segrêdo em segundo disenróla.

O hóme quando é nenê, i coméça a ingatinhá, di mânhã, anda di quatro pé; na sua vida adurta no;meio-dia, quando o sór tá a pino, anda di dois pé; quando tá bem véinho, di noitinha, gerarmenti anda di trêis pé, porquê pricisa di uma bengala prá si apoiá.

O grã-fino se acanhou perdendo o rebolado,
Pediu desculpas ao Jeca, bastante envergonhado,
Foi saindo de mansinho entrando no conversível,
Pois notara que o caipira estava no mesmo nível.
O Jeca pra se entreter pega novamente o pinho:
Sempre gosta de cantar quando se vê sozinho;
Entoa de toda sua alma uma singela canção,
Pensando em sua amada ele chora de emoção.

JECA – Aquéla qui eu amava tânto partiu sem dizê adeus;
Deixôu os meus óio em prânto; feriu os sentimento meus;
Voôu como a andorinha prá longi da minha vida;
Fiquei sózinho na linha da tristi istrada da vida.

Passando um certo tempo, surge uma linda boneca,
Com seu tênue corpinho, logo ela excita o Jeca;
Moça de uma beleza, que eu nunca vi igual,
Uma bela japonesa de sorriso jovial;
O caipira sorridente pegando logo a viola,
Com uma moda amorosa ele entra de sola.

JECA – Japonêsa linda, dos óio castânho,
Seu oiá alégri não mi é istrânho;
Bôca pequeninha; lábio côr di rósa,
Do jardim do amôr, a flôr mais formósa;
Quéro mi inlaçá no seu côrpo delgado;
Quéro ser feliz sempri ao seu lado.

Replena de tanta lisonja, corada a jovem nissei
Chegou-se perto do Jeca com uma certa timidez,
Sorrindo se apresentou dizendo ser a Rosinha,
Filha de pais japoneses: – uma pura caipirinha!
O Jeca todo animado declarou o seu amor
À bela florzinha do campo, cheia de esplendor.

JECA – Rósinha, ocê é prá mim, a flôr mais perfumada,
Qui surgiu no jardim da minha tristi istrada;
É mais béla qui o jasmim no alegrête incontrada;
É amôr qui num têm fim: minha béla i dôce amada.

Logo após alguns meses, os dois estavam casados,
O Jeca estava feliz, deixando a tristeza de lado;
Já não se lembrava mais de seu idílio querido,
Que muito o fez sofrer, desde que tinha partido.
Um dia, por coincidência, o matuto encontrou
Na estrada desta vida aquela que o magoou,
Quase que, de relance, sem sequer titubear,
O Jeca pega a viola e começa a cantar:

JECA – Quando ti perdi quasi eu morri di tanta tristêza;
A vida prá mim, um martírio sem fim perdeu a belêza;
Pôrém, um nôvo sór quar um tristi bemór si pôis a raiá;
Hôje tênho quem mi âma, num priciso mais da châma
Do amôr qui mi fêiz chorá.

A moça fala pro Jeca, que estava mui feliz,
Por ele ter encontrado o amor que sempre quis;
Desejando felicidades, para o ex-amor sorri,
Dando um aperto de mão, dizendo: – adeus, Tibagi!

A vida corria serena nesse pedaço de chão;
O Jeca deitado na rede com a viola na mão;
De repente, chega alguém, dizendo ser um gaúcho,
Começa a falar bonito, vestido de puro luxo.

GAÚCHO – Olá, amigo, Deus o salve! Quero me apresentar,
Sou filho da campanha, gosto muito de falar,
Chamo-me Lucas Arantes, venho lá de Jaguarão,
Desci da verde coxilha para pisar neste chão;
Deixei meu pingo supimpa preso à soga no pastinho,
Mas, não consegui prender: – Mercedita, meu benzinho!

Criei com tanto amor uma linda golondrina,
Uma beleza em flor: – Que encanto de menina!
Prometi lhe dar o céu, ingrata ela recusou,
Destilando acre fel: – Foi-se com outro amor.

GAÚCHO – Este descante eu trovei quando estava nos Pampas,
Onde o repasto é parco, mas se brinda na guampa;
Onde o minuano claro não arrefece o coração,
Mas, sopra com tepidez, inspirando-o de paixão.

O Jeca tentava falar ante o moço viandante,
Que trovava insistente seus alegres descantes,
Falando de sua prenda, a beleza da campanha,
Que nas águas do Uruguai o seu belo corpo banha.
O gaúcho orgulhoso de sua estirpe, feliz,
Com desdém olha pro Jeca, e sorrindo logo diz:

GAÚCHO – Amigo, canela vermelha, diga-me, se tu souberes,
Quais são as duas velhice? (1) Te digo, não são rosicleres;
Aposto que tu não sabes, por isso vou te responder:
Existe a velhice do corpo, (1) que os anos vêm roer;
A outra é a da alma, que deixam as desilusões, (1)
Torpecendo os sentidos debilitando as paixões.

Aguardando o ensejo para arguir o gaúcho,
O habilíssimo caipira, um autêntico machucho
Aplica uma charada nesse moço insolente,
Que após muito falar emudece de repente.

JECA – Dois pai i dois fio viajava pelo sertão,
Quando já di noitinha chegarô numa pensão,
Pedirô uma pôusada prá pôde discansá,
E anssim di mânhãzinha começá a caminhá.
O dono dissi qui tinha um quarto dizocupado
Com trêis câma di sortêro prá os hóme cânsado;
Nôutro dia o hospedêro quando foi êles acordá,
Notôu qui as trêis câma pôde êles acomodá.
Diga agóra, seu môço, si pudé mi retorquí:
– Como pôdi êsses hóme nas trêis câma dormi?

1 (entre aspas) As duas velhice: O GAÚCHO de José de Alencar
página 11, Editora Ática S.A.

O gaúcho, desconcertado, não conseguiu responder,
A charada do matuto era duro de roer;
O sertanejo com calma principiou a explicar,
E o confuso enigma começou a clarear.

JECA – Dois pai i dois fio são ocê, seu pai i seu vô;
Seu vô é pai di seu pai, seu pai é pai do sinhô;
O sinhô é fio di seu pai, i seu pai é fio di seu vô;
Em suma são trêis pessoa, i num quatro como pensô.

Reconhecendo a perspicácia do amigo canela vermelha,
O gaúcho Lucas Arantes baixa a sua sobrancelha;
Dantes, só olhava do alto, do píncaro de sua altivez,
Querendo dar xeque-mate, qual no jogo de xadrez;
Admitindo a nobre lição, que o caipira lhe dera,
No âmago do tal gaúcho, um gesto húmile gera;
Despede-se do sertanejo, dando parabéns ao Jeca,
Montando o seu morzelo sai em busca da boneca.

O tempo ia passando naquele lugar parado,
Como num conto veloz sobre um cavalo alado,
O pégaso que sobrevoa a imaginação da gente,
Nos prados da utopia galopando realmente.
Tangendo seu velho pinho, O Jeca logo adormeceu,
Seguindo o Mediterrâneo, chegando no mar Egeu;
De Creta segue à Esparta, de Esparta vai pra Atenas,
Como na guerra de Tróia, tudo por causa de Helena.
Nesse sonho helenístico, de tom áureo aristocrático,
Adentrando a bela Grécia, no período democrático,
Onde um velho filósofo forçava o povo pensar,
E assim com a própria vida, supérrimo preço pagar;
Sócrates era o seu nome, um simples questionador,
Que incomodava indoutos e até mesmo um doutor;
Velho médico das almas; um parteiro de idéias,
Com sua arte obstetra acabou numa assembleia;
E assim, sendo condenado, sem querer se retratar,
Por defender sua tese instigando o povo pensar.
Nesse ínterim, então, chega o nosso filósofo caipira,
Com sua arte cabocla, que até mesmo mestre admira.
Encontrando-se com Sócrates na bela praça ateniense,
Travam um gostoso diálogo, qual a valsa vienense;
De repente, o Jeca acorda, e logo põe-se a pensar,
Realmente gostaria do diálogo continuar […]

1998

1 comentário

  1. Aparecido do Nascimento em 29/07/2016 às 18:52

    Conto lírico, composto por: Aparecido do Nascimento “Makininha”. Registrado na Biblioteca Nacional.

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