A Guerra dos Peixes – a luta do Dourado contra o Curimba

Recentemente tive a privilégio de desenvolver, com alguns alunos de Piracicaba, um trabalho de Antropologia abordando lendas e contos folclóricos brasileiros. Pudemos constatar quão rica é a mitologia de nosso país, pois são incontáveis as contribuições culturais de cada nação indígena, dos europeus e negros que aqui se fixaram, dos imigrantes e de outras manifestações alegóricas de origem desconhecida. Nesse estudo, solicitei dos estudantes que pesquisassem sobre o tema e, também, que entrevistassem pessoas mais idosas, avós ou conhecidos, para que relatassem histórias lendárias antigas.

A resposta ao desafio foi muito satisfatória, ainda que nem todas as narrativas coletadas fossem do Brasil. Negrinho do Pastoreio, Saci Pererê, Caipora, Curupira, Iara Mãe D’água, Homem do Saco, ET de Varginha, Chupa-cabras, Lobisomem, Boto Cor-de-rosa, Loura do Banheiro, entre tantas outras, povoaram os trabalhos dos alunos.

Uma lenda, em especial, chamou minha atenção: “A Guerra dos Peixes”. Vários dos idosos consultados referiram-se a uma história que se passou em Piracicaba, o que é incrível. Diferentes versões foram apresentadas, mas, em essência, a história é a mesma. Antes de contá-la, devo dizer que pesquisei pela internet sobre essa lenda e também em vários livros, inclusive na brilhante obra “Xingu – os Índios, seus mitos” de autoria dos irmãos Orlando e Claudio Villas Boas, porém nada encontrei, mesmo que fosse algo aproximado ao conteúdo do que se conta na “Terra da Pamonha” ou “Noiva da Colina”, como preferirem.

A lenda

Peixes_Pixabay_Kenya-Aguirre

(Imagem de Kenya Aguirre, por Pixabay)

Reunindo apenas os elementos comuns das histórias e omitindo aspectos distintos e peculiares dessas narrativas, tem-se a seguinte lenda:

“Numa época em que só havia índios e animais, bem antes da chegada de povos de outros continentes, um curumim, indiozinho da tribo dos Paiaguás, perguntou ao pai:

– Pai, por que existe tanta espuma no salto do Rio Piracicaba?

Pacientemente, o pai explicou:

– A espuma existe para relembrar uma guerra em que todos os peixes deste rio se envolveram. Por muito tempo, os peixes viveram em harmonia, mas um dia, ninguém sabe o porquê, um conflito mortal ocorreu. Dois exércitos gigantes de peixes começaram a disputar o domínio do rio. De um lado, o exército comandado pelo Dourado, peixe guerreiro, e, de outro, a liderança era do Curimba, nome reduzido de Curimbatá, este de cor prateada.

Cada um desses chefes tinha, ao seu comando, doze traíras, que eram responsáveis pelas ações de guerra e cada traíra chefiava muitos mandis, piavas e lambaris. Os peixes pequenos se uniram a um ou a outro exército, por se identificar e gostar das diferentes tonalidades, dourada ou prateada. Até mesmo os índios começaram a torcer por um ou outro dos bandos. Cada grupo, de peixes e de índios, inventou uma música em que se cantava a supremacia sobre o inimigo e se exaltava a força de seus guerreiros. Criaram danças e símbolos próprios.

Em cada ritual, alguma coisa nova era mostrada para unir os guerreiros, fossem eles peixes ou índios. Seguiam um triste princípio: “Os indivíduos só se unem, quando têm um inimigo comum”. A discórdia instalou-se até nas aldeias. O resultado foi trágico: guerra total. Muitas foram as mortes, entre os peixes e entre os índios. A Natureza chorou.

O Espírito Maior, diante de tanta tragédia, resolveu punir a todos pela descabida ambição. Fez com que, gradativamente, o rio fosse secando. Pela primeira vez na história, as pedras do salto do Rio Piracicaba ficaram expostas. Isso serviu para que todos refletissem sobre o absurdo das guerras, que, no fim, nunca têm vencedores, apenas perdedores. Representando o Espírito Maior, surgiram das pedras doze cascudos, peixes pretos, para simbolizar o luto pela morte do rio. Assim que foram vistos, as traíras de cada um dos exércitos desculparam-se com os cascudos.

Embora os líderes não tivessem essa humildade, a paz começou a se reinstalar, mesmo com os dois grupos rivais se portando, agora, como adversários e não mais inimigos. Cada um deles passou a viver definitivamente a própria vida. Até hoje, o Dourado acusa o Curimba pelo início da guerra. Nem é preciso falar que o Curimba diz o contrário.

O curumim interrompeu o pai:

– Mas, pai, e a espuma?

– Ah, sim! Você sabe que tem uma época em que os peixes, para se reproduzirem, nadam contra a correnteza até as cabeceiras e quedas d’água do rio. Esse período é chamado de “piracema”, em que a quantidade de água é máxima no rio. No salto, forma-se uma espécie de véu de espuma branca, símbolo de harmonia. Os peixes param bem ali, no salto, e não é por caso que o nome Piracicaba – lugar onde o peixe para – foi preservado. Isso tudo aconteceu devido a uma recompensa do Espírito Maior e da Natureza pela retomada da paz, embora parcialmente, porque ainda existe separação entre os peixes e entre os homens, pois muitos amam os dourados, enquanto outros optam pelos prateados”.

Em tempo: Talvez “Noiva da Colina” seja mais apropriado para referir-se a Piracicaba devido ao véu da noiva, pois na época da piracema, entre outubro e março, o véu reaparece nas fortes correntezas, infelizmente com menos intensidade e volume de água a cada ano, porque a guerra continua, agora entre “tubarões”, peixes alienígenas, estranhos ao nosso rio.

*Roberto Telles é professor de filosofia e sociologia.

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