A luta de Piracicaba contra a Ituana e decepção com Maria Fumaça

Francisco de Assis Iglésias , nascido em Piracicaba em 1889, formado pela ESALQ em 1909, teve importante papel da agricultura brasileira: entre cargos de realce, como diretor geral do Serviço Florestal do Brasil e diretor do Ensino Agrícola da Secretaria de Agricultura, foi o primeiro agrônomo a introduzir, no Nordeste, a utilização do soro antiofídico. Entre muitas de suas publicações, deixou registradas, entretanto, impressões e relatos sobre a Piracicaba que conheceu e onde viveu a meninice e a juventude, recentemente recuperadas com a nova edição do livro Memórias de um agrônomo, da Editora Ceres, do qual reproduzimos um extrato.

…”Piracicaba era um beco sem saída. Naquele tempo só contávamos com um ramalzinho minguado da Ituana que, por mal de nossos pecados, fazia ponto final na Noiva da Colina. Quanto a rodovias, estávamos limitados a caminhos carroçáveis, cuja conservação corria por conta dos municípios que atravessavam e do auxílio também dos sitiantes e fazendeiros, obrigados pelas autoridades municipais a darem um dia de serviço. Quem dispunha de camaradas, operários, mandava dois ou três deles, conforme as posses do patrão.

Pela Ituana tínhamos duas comunicações para São Paulo: uma pela Inglesa, até Jundiaí, onde aí baldeávamos para a Ituana e a seguíamos para Piracicaba. A outra via ligava São Paulo a Piracicaba, diretamente, passando por Itaici, onde se almoçava. A comida era servida numa mesa grande. Ali havia tudo em abundância: era tutu a mineira, virado de feijão à paulista, frango assado, lombo de porco, macarronada, linguiças, bifes de todo o jeito, ovos. A sobremesa constava de doces caseiros. Podia- se comer à vontade. Esse almoço custava dois mil e quinhentos réis. Almoço suculento, pantagruélico mesmo. O dono do restaurante era conhecido pela pitoresca alcunha de Chico do Itaici…

Foto: Caio Cartaxo Bezerra/Olhares

…A Ituana não tinha o leito da linha empedrado, de sorte que os passageiros chegavam ao seu destino coberto de pó. Piracicaba lutava, sem cessar, para se ver livre de tal estrada de ferro. Os Moraes Barros, sempre atentos ao progresso da terrinha, não descansavam, não perdiam oportunidades. O plano dos ilustres filhos da Noiva da Colina era a possível passagem da Estrada de Ferro Paulista por Piracicaba, de lá seguir para a zona de Botucatu, livrando-se a primeira de viver num beco sem saída. Como permanecia, era um entrave ao progresso de nossa comunidade.

Quando o problema estava em situação favorável, seguiu para São Paulo, devidamente credenciado, o Sr. Gustavo Moraes Barros, na ocasião chefe de secção de Contabilidade do Engenho Central. A combinação era esta: caso a solução fosse favorável, ele passaria um telegrama assim redigido – “Açúcar refinado sem alteração “. Fazia- se necessária essa precaução, porque naquele tempo os telegramas eram enviados pelo tráfego das estradas de ferro; e como não queriam que a Ituana tomasse conhecimento do assunto, a providência seria telegrafar em código.

Ao tomarmos conhecimento do telegrama: “Açúcar refinado sem alteração”, à noitinha, organizamos uma marcha empunhando archotes luminosos pelas ruas centrais, saudando pelo acontecimento auspicioso as redações dos jornais, com discursos de lado a lado, pondo em relevo o fim do beco sem saída e a abertura das portas de Piracicaba para o interior rico de nosso Estado. Foram saudados, como de praxe, os vice-consulados das nações amigas.

Depois de tanta alegria justificada dos piracicabanos, nada de positivo quanto à passagem da Paulista por nossa terra. Comentávamos, decepcionados, termos que agüentar a Ituana até que Deus fosse servido. Um dia – tudo neste mundo tem um dia – a Estrada de Ferro Paulista construiu um ramal de Nova Odessa a Piracicaba. Calculamos que seria uma coisa digna da ferrovia, que foi por muito tempo orgulho dos paulistas. Mas não, o novo ramal apresentou características de um filho expressivo da velha Ituana, com uns velhos e poucos confortáveis carros puxados por locomotiva a lenha, verdadeira Maria Fumaça, como os espirituosos cariocas as denominavam. E Piracicaba continuou a ser beco sem saída, como sempre fora… Felizmente, entramos na era do rodovia, dos automóveis de todos os tipos. Não sei se o ramal de Nova Odessa a Piracicaba melhorou, pois, para gaúdio de minha velhice, só ando de automóvel, incluindo os ônibus, que não deixam de ser automóveis.

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