“Anos de Chumbo”: tortura em Piracicaba (7)

Cumplicidade jornalística

Cecílio Elias Netto

Naqueles dramáticos tempos, Piracicaba contava apenas dois jornais: O DIÁRIO e o Jornal de Piracicaba. Tínhamos linhas editoriais distintas e até mesmo conflitantes. O JP mantinha-se fiel ao seu tradicional conservadorismo, porta-voz da antiga UDN e, sem dissimulação, havia apoiado o golpe militar. Losso Netto sempre foi um homem de bem, mas com posicionamentos clara e honestamente conservadores. Mantinha suas esperanças no regime militar, apesar das violências e torturas que já se iam tornando cada vez mais conhecidas.

A chegada de Lazinho a Piracicaba – com os seus desmandos, crueldades e crimes contra a dignidade da pessoa humana – passou desapercebida a Losso Netto, então já muito doente e combalido. Por isso, precisou confiar na sua redação e principais jornalistas. Não lhe restava, talvez, outra alternativa senão a de confiar. No entanto, a área de cobertura policial do JP passou a comprometer-se seriamente com Lazinho, dando-lhe coberturas positivas, ocultando os crimes para criar-lhe a auréola de “grande policial”. Na verdade, há que se reconhecer a competência policial de Lazinho, que, no entanto, era reduzida a pó por sua desumanidade e crueldade criminosas.

Contando com a cobertura de alguns jornalistas e fotógrafos daquele jornal, Lazinho tornava-os cúmplices de suas bestialidades, pois as notícias de seus amigos davam-no como um herói na defesa da lei, no combate ao mal. Ele preparava flagrantes, torturava e, depois, chamava cúmplices da imprensa para apresentar suas vítimas como criminosos participantes de quadrilhas que ele dizia desbaratar.

Houve, desgraçadamente, quem tivesse acreditado “nas verdades” daquelas coberturas jornalísticas infames. O DIÁRIO não contou sequer com o apoio ou a solidariedade de seus confrades tanto do jornalismo impresso quanto o falado, rádioemissoras.

A zona do meretrício – então conhecida como Ripolância, maldade política para atacar Romeu Ítalo Rípoli – perdia a sua condição de área de prostíbulos para se transformar – graças à obra de Lazinho e seus asseclas – no principal ponto de difusão, contrabando e tráfico de drogas de Piracicaba. Foi aí e quando que começou a mancha que nos deram à Noiva da Colina. Pois passaríamos, também, a ser conhecidos como “A Amsterdã Paulista”.

Valdir de Jesus , de espancado a espancador

Eu, Valdir de Jesus Gomes da Silva, 25 anos, tapeceiro (ex-policial), residente à rua Dr.Paulo de Moraes 1389, declaro a bem da verdade tudo o que segue:

Eu vinha sendo perseguido pelos investigadores Lazinho, Fininho e Dore, porque eles tinham certeza de que eu era traficante de tóxicos, dado que quando eu era polícia militar, eu tive que responder perante o Conselho de Disciplina,no 8º BPM, de Campinas, pelo qual fui absolvido (há uns 4 meses). Eu fui desligado da PM, creio que por causa da publicação do Tuca, no “Jornal de Piracicaba”, referente a um espancamento de operários no recinto da Delegacia.

O Tuca publicou que eu fui o espancador. Na realidade, eu prendi os operários, prisão essa autorizada pelo sargento Ramiro, participando dessa caravana vários policiais; nenhum PM pôs a mãos nos operários; nenhum desses eram operários, mas vagabundos, e eram acusados da morte do motorista “Vado”. Chegando à Delegacia, eles fizeram declaração perante o sargento Ramiro, cabo Gerson e cabo Geraldo, confessando que sabiam quem tinha matado o motorista; o Mário (um dos “operários”) declarou que quem matou o motorista foi um tal de Freitas, e que o revólver estava na casa desse Freitas. Então eu pedi ao sargento Lorival uma viatura pra ir à casa do Freitas. Essa viatura me foi negada pelo sargento Norival, porque ele tinha bronca comigo. Então eu apelei para o dr. Bento, e ele autorizou, mas logo em seguida suspendeu a ordem, alegando que tinha que usar a viatura, e que esse serviço cabia aos investigadores daqui e não a mim, que servia em Campinas. Nessas alturas, eu abandonei o recinto da RP, deixando os presos na carceragem, e fui embora para minha casa. Então, o espancamento, se houve, foi obra dos investigadores. No dia seguinte, fui surpreendido com a publicação de que eu havia espancado os “operários”.

No fim de maio, quando terminei de fazer uma entrega de estofados (que eu mesmo fabriquei, pois trabalho nisso), entreguei à Ivone Mansur, tomava um taxi quando fui cercado pela viatura policial e dois Volks particulares (um vermelho e o outro verde) , desses veículos descendo cerca de 11 policiais, portando umas 8 metralhadoras, e sem me dizer nada, me algemaram. Só que a algema pegou de mau jeito, digo, ao invés de eles porem a algema nos punhos, puseram o bico na algema entre o meu dedo indicador e o polegar, pegando a pele e atravessando; isso me machucou (tanto que depois tive que tomar 11 pontos no lugar e ainda me encontro incapacitado para exercer as funções na minha tapeçaria). Então, o Lazinho colocou a algema naquele lugar de propósito, para machucar. Perdi sangue uma hora e meia, e depois me levaram ao Pronto Socorro. Quando eu senti que a algema prendeu minha pele, eu reagi instintivamente, puxando a mão, o que chegou a rasgar essa pele que liga o indicador ao polegar. Eles acharam que eu estava reagindo à prisão e me deram uma pancada no rosto. No “Jornal de Piracicaba”, o Tuca publicou que eu reagi à prisão e lutei com os policiais. Não aconteceu nada disso, e sim o que eu disse acima. Inclusive mo motorista Lelé – que trabalha no ponto de taxi do Jardim Brasil – prestou depoimento na Polícia e confirmou essa minha versão.

Na Delegacia, eu chamei o dr. Roberto Caldari, que lá compareceu, e depois de uns 15 minutos, fui colocado em liberdade. Foi feito um flagrante de porte ilegal de armas. Preciso dizer que eu andava armado porque até há pouco tempo exercia a função de policial, e podia ser assediado por algum marginal que tivesse bronca comigo; então, pra me proteger, eu andava armado.

Posteriormente, no dia 24 de junho, por volta das 18h30, quando eu me encontrava no taxi do se. Camolesi (que trabalha no ponto da Rodoviária), junto com o Valdir, o Sergio (o “Sergião”), e o cabo do exército Luiz H. Martins, fomos até a residência do Sergião, tratar de assunto de emprego. O Sergião estava com um irmãozinho de criação, de uns 2 anos de idade. Em nossa companhia também estava um moleque, eu tinha pegado um lanche para ele no Postão. Estávamos na frente da casa do Sergião, quando o Lazinho, o Galo e Dore, armados de metralhadora, nos deram voz de prisão. Fomos revistados, nós e o carro, e nada foi encontrado. Inclusive há várias pessoas em volta do carro, e viram que não foi encontrado nada, nem conosco nem no carro. Tanto isso é verdade, que eles liberaram o motorista e o carro.

Nos conduziram, então para a Delegacia. Como eles viram que a minha carteira profissional estava assinada, isto é, que eu estava trabalhando, que o outro era cabo do exército, e que não havia nada em nosso poder, resolveram mandar ir buscar o taxi. O motorista Camolesi me contou depois que tinha saído para outra corrida, e quando voltou ao posto, lá já havia dois investigadores esperando-o. os investigadores pediram que outro motorista, Zé Generoso, descesse junto com eles para a Delegacia, para testemunhar que o taxi do Camolesi iria ser revistado. Então, eles nos tiraram da sala de plantão, e nos levaram até o taxi, que estava estacionado frente à Delegacia. O Camolesi me contou – isso ele falou também no depoimento dele na Delegacia -, que antes de nós sairmos do plantão, os investigadores foram revistar o carro (agora pela segunda vez, porque na primeira nada encontraram, como eu já disse acima). O motorista afirma que nada encontraram também nessa segunda revista. Nós calculamos que foi nessa segunda revista que eles puseram “Stenamina” no carro, porque logo em seguida nós fomos trazidos de dentro da Delegacia. Então, o Fininho estava sentado no banco dianteiro, revistando o porta-luvas, e o Lazinho, com uma lanterna, revistava o porta-malas e o moto do taxi. Então, o Lazinho disse pro Fininho que revistasse por baixo do banco dianteiro, para ver se não achava nada entre as molas. Aí, o Fininho enfiou a mão a por baixo do banco e dali retirou 4 cartelas de “Stenamina”. Com cara de cínico ele virou-se para nós e declarou: “Tá aqui, achei”. Eu vi que eles retiraram as cartelas do assoalho do carro, e não dentre as molas. Imagine si, o carro movimentando-se pela cidade e as cartelas não saírem do lugar.

Aí eles nos apresentaram ao Dr. Messias Pimentel, pedindo que ele lavrasse o flagrante. Nós dissemos que o flagrante foi “arrumado”, e ele nos declarou que podia ser, mas que ele tinha que dar fé nas palavras dos investigadores; e que se o flagrante tivesse sido forjado, no Forum ele cairia. Após assinarmos nosso depoimento, ficamos na sala de plantão, eu e o Sergião, junto com o investigador Jurandir. Enquanto isso, o cabo Luiz estava sendo escoltado pelo sargento do BIB, em outra sala, para ser transportado para Campinas. Foi quando, o investigador Jurandir fez a proposta, para mim e pro Sergião, de que ele poderia facilitar nossa fuga se nós não contássemos no Forum que ele e o Lazinho tinham entregue a nós cartelas, digo, ao Sergião, cartelas de Stenamina para forjar flagrantes coma Ivone Mansur, a Mazola e o soldado Altevir. Ele pediu, ainda, que nós lhe entregássemos algum dinheiro que porventura houvesse em nossos bolsos. Eu entreguei a ele 74 cruzeiros, e o Sergião, 140 cruzeiros. Assim que entregamos o dinheiro, ele abriu uma algema de cada um, para dar a impressão de que a algema tinha sido aberta por nós. E disse que nós nos virássemos, logo que ele saísse para ir à sala do Delegado. Foi o que fizemos. Saímos calmamente pelo corredor da Delegacia, e ninguém nos interrompeu. Ganhamos a rua, tomamos um taxi, e fomos cada um para sua residência. Permanecemos dentro da cidade, e como o caso foi absolvido pelo Juiz e nosso flagrante foi relaxado porque era, realmente um flagrante forjado, até agora ninguém mais nos amolou.

Devo declarar, também, que quando descemos para a Delegacia, vindo presos da casa do Sergião, o investigador Lazinho vendo que não tinha como nos pegar, forçou o Pelezinho, que é menos, a declarar que eu dava picadas nele, para treinar. O Lazinho percebeu que o moleque não tinha nada a declarar, e disse para ele que “presunto de preto era feio”, e que se acaso o moleque não dissesse o que ele queria, o moleque poderia aparecer boiando no rio; além de lhe dar dois tapas no rosto, cuspiu no rosto do moleque. O Pelezinho declarou tudo isso no depoimento dele. Aí o moleque começou a chorar e foi conduzido para a sala do investigador Décio.

Procurei “O Diário” e falarei tudo isso ao Juiz, porque eu preciso e quero trabalhar, e desse jeito, eles acabam me transformando em bandido. Preciso declarar, também, que o Tuca anda publicando coisas que estão na imaginação dele, e não constam sequer dos depoimentos, jogando assim a sociedade contra a minha pessoa, e dificultando minha vida profissional, porque depois dessa publicação imaginosa, ninguém vai me querer dar emprego.

Devo dizer, também, que o Sergião já tinha largado de tomar tóxicos, mas os investigadores com esse negócio de lhe dar tóxicos para ele passar para outros e assim fazer flagrante, com a ameaça de arrumar um flagrante para ele também, estão empurrando de novo o rapaz para o vício.

Piracicaba, 10 de julho de 1972

Valdir de Jesus Gomes da Silva

 

 Pedro Sergio, um “distribuidor” de Lazinho

Eu, Pedro Sergio de Campos, 23 anos, polidor de carro, solteiro, residente à rua Riachuelo 1503, declaro a bem da verdade:

– Acho que nos primeiros dias de junho, o Lazinho e o Manezinho me ameaçaram prender pela segunda vez se eu não apresentasse algum “serviço” para eles, a respeito de tráfico de drogas. Então eu, para me ver livre, disse que havia um cara de Campinas, com uma camionete, vendendo ampolas lá no Jardim Brasil. Então o Lazinho me deu dinheiro pro taxi, e disse que iria ficar ali debaixo do eucalipto, e que eu deveria combinar um negócio com o cara da caminhonete ali perto, e que se a coisa fosse bem sucedida, se ele conseguisse fazer o flagrante, ele me daria ou parte do “produto” ou uma quantia em dinheiro.

– Eu tomei o taxi, fui pro Jardim Brasil, lá tomei outro taxi e fui embora pra minha casa. Daí, no outro dia, ele foi na minha casa e achou ruim de eu deixar ele gelando lá embaixo do eucalipto. Eu disse que o cara havia visto ele conversando comigo e disse dado no pé.

– No outro dia, ele foi em casa, com a menina dele, num Fuscão, e ficamos dando umas voltas pela cidade, parando em frente ao cemitério. Aí ele me fez a seguinte proposta:

– Ele me daria 100 “garrafas” (ampolas de Perventin) para eu passar para a Mazola, o Valdir, o cabo Luiz, o Altevir e avisasse a ele, para ele fazer o flagrante. E ele me deu as ampolas, no mesmo dia, por volta da meia-noite, ali na rua Moraes, perto da Delegacia.

– Eu peguei as drogas, e fui despistando ele, dizendo que fulano e sicrano não estavam por aí, e que a Mazola receberia a droga tal dia. Mas eu já tinha avisado a irmã da Mazola e os outros, de que o Lazinho estava querendo aprontar para eles.

– Depois, eu dei uma sumidinha. Um certo dia, ele foi na minha casa, e me cobrou os “serviços”. Eu disse que tinha acertado qualquer coisa com a Mazola, mas que as drogas já estavam acabando. Então, ele disse que esperava que eu “ligasse” ele com esse negócio com a Mazola, e me deu mais 200 Stenamina.

– Quando ele percebeu que eu não ia fazer nenhum serviço para ele, ele aprontou aquela que o Valdir contou no depoimento dele.

– Devo dizer, também, que depois da nossa fuga da Delegacia, como nós fugimos com algema e tudo, o Lazinho perguntou para a Sônia se ela não tinha me visto, que ele estava querendo a algema. Daí eu mandei recado de que ele viesse buscar a algema comigo. Eu entreguei para ele, e ele me disse que eu mandasse a Sônia lá na Delegacia, que ele me mandaria um presente. A Sônia foi e recebeu do Lazinho 50 ampolas, digo, cartelas de Stenamina, sendo 30 para mim e 20 para elas. Sei que a algema do Valdir ainda está com ele, inclusive uma japona do Dore, que ele emprestou para o Valdir, para que ele se protegesse do frio.

Piracicaba, 10 de julho de 1972

Pedro Sergio de Campos

2 comentários

  1. Mariana em 26/03/2014 às 22:21

    Cecílio, que fim tiveram Lazinho, Galo, Dore e companhia?

  2. Paulo Celso Marques em 29/10/2016 às 23:46

    Lazinho aposentou e mora em Campinas; o Galo também está aposentado e reside em Piracicaba; o Dore faleceu à cerca de 08 na cidade de Sorocaba.

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