“Anos de Chumbo”: tortura em Piracicaba (8)

pau de arara 4O fundamental papel da Igreja

Cecílio Elias Netto

Terra sem lei. Eis o que fomos nos tempos do horror implantado por Lazinho e seus asseclas. Qualquer cidadão podia ser abordado, atacado, preso, levado aos subterrâneos da Polícia, onde delegados se submetiam ao poder do torturador ou eram coniventes. Em terra sem lei, ou se perde a esperança ou se alimenta de forças especiais para lutar por valores e princípios decentes.

Nada, naquela luta intensa e desgastante, conseguiríamos fazer não fossem a participação, a solidariedade, a indignação de pessoas e instituições que vieram em auxílio da população. Já citamos os valorosos Marcos de Toledo Piza, Nelson Martinez e alguns outros advogados. Mas houve, também, coragem de reagir entre estudantes e famílias que nos pediam sigilo para não serem prejudicadas. A Justiça começou a se movimentar – ainda que inutilmente, pois esbarrava na reação da própria Polícia – através do juiz substituto Luiz Antônio Morato de Andrade e do juiz titular Alfredo Migliore.

O grande e decisivo auxílio, no entanto, foi o da reação também indignada da Igreja Católica, através do Bispo Aníger Melilo e seus vigários. Dom Aníger – que, já ao início da ditadura, acolhera estudantes, perseguidos na cripta da Catedral – trouxera jovens padres para a Diocese, entre eles José Maria de Almeida, José Maria Teixeira, Jamil Adib, Otto Dana, Walmor Mendes. E vitalizou a igreja diocesana com uma coragem evangélica emocionante.

Ao tomar conhecimento daqueles horrores, D. Aníger lançou um manifesto para ser lido em todas as igrejas da Diocese. De repúdio, de indignação, de defesa da dignidade humana. No dia 4 de julho de 1972, ele assinou o documento enfatizando o que os bispos do Estado de São Paulo haviam declarado, em assembléia do dia 8 de junho do mesmo ano, lembrando dispositivos da Constituição de 1969 e de documentos eclesiais.

A zona do meretrício – não por ser local de prostituição, mas por ter-se tornado centro de distribuição de drogas e quartel-general de Lazinho e seus asseclas – acabou por ser fechada. E uma figura extraordinária se impôs em defesa e no acolhimento de prostitutas perseguidas e extorquidas: Frei Augusto Girotto, o frade capuchinho que transpirava santidade, amor à justiça e indignação diante de violentações. Prostitutas foram encaminhadas para centros de readaptação social e outras – algumas delas refugiadas em O DIÁRIO – conseguiram escapar à sanha criminosa de Lazinho, retirando-se da cidade.

No próximo e último capítulo, narraremos como aconteceu a derrota final de um homem sanguinário, que, “em nome da lei”, viveu para cometer iniquidades e barbárie.

Augusto, preso por “roubar flores”

Eu, Augusto Fernandes da Silva, residente na Pensão Paulista, à rua Veríssimo Prado, em São Paulo, declaro, a bem da verdade, que no dia 4 de setembro deste ano, por volta das 2h30, saí com outros amigos para fazer uma serenata. No caminho, sugeriu-se levar uma rosa e veio, então, a ideia de apanhar uma no jardim de uma residência. Quando estávamos tirando a rosa, fomos apanhados por policiais, que nos espancaram ainda no local, conduzindo-nos, em seguida para a Delegacia de Polícia. Lá chegando, fui espancado e os meus amigos recolhidos ao xadrez, sendo que um deles foi para a cela forte. Depois, fui recolhido também ao xadrez. Fomos colocados em liberdade, todos nós, hoje, por volta das 12h45 para prestarmos esclarecimentos amanhã, às 13 horas, na Delegacia de Polícia. Fomos colocados em liberdade porque o Delegado não estava na cidade e amanhã deverá estar para nos ouvir. O que foi preso na cela forte estava com o braço engessado e, por isso, não foi espancado. Conheço todos os policiais que nos espancaram: Pedro, João, Jurandir e um que conheço seu nome todo, Geraldo Zani. Na Delegacia, apanhei, mais ou menos, meia hora, com cassetete. Como consequência disso, meu corpo está com diversas lesões.

Sem mais, firmo a presente declaração.

Piracicaba, 5 de setembro de 1972

Augusto Fernandes da Silva

 

Fermiano, taxista apanhou até sangrar

Eu, Fermiano Pacheco de Moraes, abaixo assinado, declaro, a bem da verdade, que no dia 21, por voltadas 2 horas, fui agredido por dois investigadores. Sou um motorista de praça e estava no bar localizado no Jardim Brasil tomando café. À saída, quando ia tomar o carro para o trabalho, fui abordado pelos investigadores Osmir e Dore que me espancaram bastante, machucando-me o ouvido, a boca, a barriga e a perna, sendo que a gravidade dos ferimentos deixou minha roupa ensanguentada. Até agora ignoro qual possa ter sido o motivo. Depois de ter sido espancado, tomei o carro e dirigi-me à Delegacia para registrar queixa, sem ser, contudo, atendido. Somente hoje de manhã é que fui atendido, quando foi registrado boletim de ocorrência.

Esse fato ocorreu no dia 21 de junho de 1973.

Piracicaba, 22 de junho de 1973

Fermiano Pacheco de Moraes

2 comentários

  1. Eloah Margoni em 29/03/2014 às 12:08

    O que se pode dizer ante tanta maldade? O que NÃO se pode é esquecer e fingir que nunca ocorreu!

  2. Eloah Margoni em 29/03/2014 às 21:47

    Muito importante sabermos a valentia e do papel de alguns religiosos de nossas cidade, já falecidos. Corajosos e dignos. Nada era fácil!!

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