“Anos de Chumbo”: tortura em Piracicaba (FINAL)

download (19)A derrota do monstro

Cecílio Elias Netto

Tive o privilégio de, desde criança, conhecer esse que foi um dos grandes vultos de Piracicaba. Ele, em terceira núpcias, era casado com Ignês Seghesi, irmã de minha tia Nida Seghesi Elias, mulher de meu tio Antônio (Toninho) Elias. As famílias se encontravam e a figura heráldica de “seo” Mário se impunha natural e exponencialmente. Ele era um homem forte, alto, bonito, como se fosse uma estátua de bronze, mas de uma educação, humildade e delicadeza comovedoras.

Na juventude, cheguei a ser muito próximo de Mário Dedini, sendo chamado a participar de suas recepções, das famosas festas dos “pioneiros” e assim por diante. Mais tarde, quando Armandinho – seu filho amado – fez o Cursilho de Cristandade, do qual era eu dirigente, tornamo-nos muito amigos. Armando era o espelho do pai, tanto fisicamente quanto no coração. Mas tinha uma vida boêmia, o que nunca influiu em nossa amizade.

Na “era do terror” implantada por Lazinho, o monstro começou a pretender imiscuir-se na vida particular e familiar dos Dedini e Ometto. Sua intenção era preparar flagrantes contra filhos e netos e extorquir, deles, verdadeira fortuna. Aliás, as ameaças a meu filhos – quatro crianças e um bebê – eram permanentes. Telefonemas anônimos narravam o dia-a-dia de cada um: horário de ir à escola e voltar; de ir às aulas de música, de balé, de esportes, etc. E a ameaça: “Não peguei nenhum deles porque não quis.” Era uma tortura psicológica quase insuportável. E de nada adiantou apelar à Polícia, ao Ministério Público, pois eram instituições contaminadas pelo homem maligno.

Cheguei ao ponto, como solução final e descrente dos poderes públicos, de desafiar para um duelo pessoal em praça pública um dos mais notórios bandidos da cidade e aliado de Lazinho e seus asseclas. Não havia mais em quem confiar e Piracicaba se tornara uma selva onde as pessoas tinham que se defender por si mesmas. Foi quando Armandinho me procurou em uma visita à minha casa. Não estranhei porque ele o fazia regularmente. Aquela tarde, porém, seria determinante.

Armandinho – também vítima de ameaças a si próprio e a familiares – falou que ele e a família estavam prontos a me ajudar naquela luta sem fim. E contou-me que tinham narrado o que acontecia a um general da reserva em Brasília e que o militar me convidara a visitá-lo e a levar-lhe toda a documentação. Hesitei, pensando Armando Dedini estivesse sendo ingênuo, pois eu era um dos perseguidos da ditadura, “persona non grata” aos militares. Como e por quê um general, mesmo da reserva, iria ajudar-me? Armandinho era enfático, pedindo-me que confiasse nele. E que o avião da família – um Cessna – estava pronto a levar-me até Brasília. O piloto era outro amigo meu, o Tito Bottene.

Enfim, concordei e lá fomos, nós, Tito e eu, a Brasília, com diversas pastas de documentos. Cheguei ao apartamento do general aposentado, que me recebeu de roupão, cara de poucos amigos. Fez-me sentar numa poltrona, apenas me pediu os documentos, deu uma rápida olhada neles, levantou-se, agradeceu minha presença, nada mais disse e insinuou que eu deveria ir-me. Perplexo, fui- me embora após um encontro de talvez apenas cinco minutos. Nem sequer soube o nome do general e ainda não sei.

Conversei com Tito Bottene, dizendo-lhe de minha perplexidade e decepção. Tito – também de poucas palavras – tranquilizou-me: “Já está feito. Agora, seja paciente e aguarde.” Voltei como fui: desconfiado, perplexo, a sensação de ter caído numa armadilha que o próprio meu amigo Armandinho Dedini parecia desconhecer.

As torturas continuavam e Lazinho se mostrava cada dia mais feroz. Cerca de 15 dias após minha ida a Brasília, homens à paisana chegaram à Zona de Meretrício, algemaram Lazinho e outros comparsas, sequestrando-os e levando-os embora. Eram homens da Polícia Federal. Lazinho desapareceu e apenas muitos anos depois ressurgiu em Campinas, onde lá estava eu como colunista no Correio Popular.

Armandinho Dedini tornou-se, pois, o instrumento para Piracicaba retornar a uma paz pelo menos aparente. E um desconhecido e quase anônimo general da reserva foi, paradoxalmente, o homem que – em plena vigência do AI-5 – nos ajudou a vencer o terror paroquial que Lazinho, o maldito, desencadeara. Nada e ninguém, no entanto, pagarão pelos males cometidos.

Que – por mais doloridos sejam – esses depoimentos de torturas e sofrimentos nos alertem para impedir que a história venha a se repetir.

 

Malvina e o filho que morreu

Eu, Malvina Moraes, declaro para os devidos fins, a sucessão dos fatos que conduziram meu filho, Rubens Aparecido de Moraes, ao trágico falecimento, ocorrido ontem, dia 23, às 17 horas, na Santa Casa de Misericórdia de Piracicaba.

Há quatro meses, quando foi preso, junto com o Fião, ele dormia no chão de sua cela, somente com um cobertor. Durante mais de um mês ele ficou em São Paulo no DI – Departamento de Investigação – onde sofreu também muitos espancamentos, tantos quantos foram registrados aqui em Piracicaba. Eu ia a São Paulo e me diziam que ele estava aqui, voltava para cá, e me diziam que ele estava em São Paulo. E nesse mês, fiquei sem visitá-lo. Sempre, depois que o encontrei, ele se queixava das torturas por que tinha passado, aqui e em São Paulo, e me pedia para levá-lo ao médico. Também na cadeia por diversas vezes ele pediu a internação, mas nem ao menos deram bola.

Na segunda-feira, dia 22, ele foi conduzido pela manhã à Santa Casa, pelos policiais. Somente não foi internado por que não havia ordem judicial. Diante disso, ele foi solto. Quando chegou à noite, eu o estava procurando pela cidade, e não tendo encontrado, resolvi ir à Delegacia. Lá me informaram que ele estava preso, por assalto à mão armada. Mas como era possível um rapaz, nas condições físicas que estava, assaltar alguém!

Defronte à cadeia, vi um guardo que falou ao meu filho: “Vai embora. Vai roubar de novo, seu sem vergonha”. Peguei o meu filho, que passou fome, sede, dormiu no chão da cela, e levei-o à Santa Casa. Ele estava com muita falta de ar, e no táxi, me pediu para abrir todos os vidros, para que respirasse. Mas não conseguia. Eram duas horas da manhã, quando ele foi internado, na enfermaria da Santa Casa, como indigente. Às 17 horas do dia seguinte, ele veio a falecer: nefrite, foi a indicação dos médicos que fizeram sua autopsia, e lesão pulmonar, mas o peito e a barriga e o órgão sexual estavam inchados e roxos. Como nefrite?

E, por estes motivos é que me dirigi ao Diário, para estes esclarecimentos, e para que toda a cidade saiba o que tem acontecido na cadeia daqui, onde existem verdadeiros carniceiros, e não seres humanos, como se julgam.

Ele estava muito mal, pediu aos soldados que o internassem, mas não foi atendido e agora morreu! Quem vai devolver o meu filho?

Piracicaba, 24 de outubro de 1973

Malvina Moraes

 

Victorio e o delegado enlouquecido

Eu, Victório Olivio Cesarino, solteiro, maior, compareci à redação da empresa O Diário a fim de prestar declarações:

Dia 13 de fevereiro de 1975, quinta-feira, às 14 horas, compareci à Delegacia de Polícia em companhia do Sr. Geraldo Tobaldini, de Rio das Pedras, a fim de junto ao dr. Milton Baron, conseguir a liberação de certificado de um veículo zero Km. adquirido junto à Colina Mercantil de Veículos. Lá chegando, tão logo cheguei a sua sala, sentei-me junto com o Geraldo Tobaldini e o delegado imediatamente retirou-se sem dar qualquer satisfação. Lá fiquei à sua espera até as 16 horas e 30 minutos, quando o delegado chegou, eu estava esperando-o em pé na porta da sua sala. Foi quando interroguei o Delegado: “Estou esperando pelo senhor…”. Porém, nem tempo tive de perguntar alguma coisa, pois o delegado imediatamente levantou a voz, passou a me ofender dizendo: “você ficou esperando porque entrou e sentou-se na minha sala”. Tentei acalmá-lo, dizendo alguma coisa , mas o delegado começou a gritar e me agredir com um tapa no meu rim, sendo que fazia 13 dias que tinha me operado. Pedi que não me empurrasse, mas ele continuava me ofendendo. Xingou-me de ordinário, cafajeste, sem vergonha, “suma daqui, você não presta, é covarde e posso até quebrar a sua cara e não atendo você aqui, porque você é de Rio das Pedras, aquela cidade de merda e outras coisas mais”.

Vendo que era impossível conversar com o Delegado,virei as costas para sair e foi quando ele, ainda gritando, pegou-me pela camisa e me atirou contra a parede, sendo então, seguro pelo escrivão. Fui até a Colina Mercantil explicar o acontecido, pois precisava apresentar o certificado liberado pela Delegacia para retirar o veículo, e o Roberto, que me atendeu na Colina telefonou para o Delegado a fim de saber o que houve, e o delegado pediu que descêssemos na Delegacia. Fui até lá com o Roberto e o Geraldo e o delegado nos atendeu bem, perguntando o que eu queria, me pediu desculpas, assinou o documento, deu tapinhas nas minhas costas e falou que poderia contar sempre com ele. Por sentir-me humilhado, envergonhado, faço essas declarações e por ser verdade, assino.

Victorio Olivio Cezarino

 

Deixe uma resposta