Atrapalhadas piracicabanas na Revolução de 1932

Durante alguns anos, após sua participação Revolução Constitucionalista de 1932, o advogado Jacob Diehl Neto, um dos grandes intelectuais da cidade, publicou pequenas crônicas no Jornal de Piracicaba, registrando episódios cômicos, alguns trágicos, da participação dos piracicabanos no combate. Os trechos abaixo integram a crônica denominada “Confissão”, ondeidentifica vários piracicabanos e suas pequenas tragédias na frente de combate e os resquícios de sua formação no Colégio Piracicabano que acabaram por se manifestar de maneira, no mínimo, curiosa:

.….”estava o I Batalhão Piracicabano, aliás reduzido quase à metade e então chamado Coluna Boaventura, num sopé da Serra da Bocaina, aguardando ordem para tomar nova posição, e eu conversava com o capitão, mais o tenente-médico Dr. Lula (Luiz Gonzaga de Campos Toledo) e alguns voluntários esperançados de “peixes”, é dizer boatos, quando nos apareceu, montado a cavalo, um sargento apressadíssimo, com ordem verbal de retirada imediata. Estampou- se no rosto de Boaventura uma raiva trágica, que conteve a custo, e respondeu seco: “Minha gente não se retira sem ordem escrita”.

O sargento explicou que uma posição fracassara, inesperadamente, deixando-nos em risco de sermos cercados, e ainda lhe cabia avisar ao lado um grupo de combate. Lá se foi ele… … foi chamado o voluntário Venerando, acadêmico da Luiz de Queiroz. Venerando Ribeiro do Vale, médio direito do XV e seu campeão no último campeonato amador. Recebeu as precisas instruções para ir em busca da ordem escrita, fez continência, pôs-se de lado, rezou uma oração e partiu. Seriam 15 horas, se tanto. Ciro Cintra, o acadêmico Cintra saído em patrulha de reconhecimento, voltou contando que havia contra nós manobras de envolvimento, conquanto mais lentas… Boaventura pos a tropa em marcha, sem atropelo.

Meia légua adiante, tínhamos de passar por uma pinguela, a saber, uma vigota de quatro metros sobre um riacho. Ali, num movimento desastrado,Tonico Osvaldo (o ilustre Prof. Antonio Osvaldo Ferraz) me derrubou n’água, com fuzil e a moamba toda, felizmente salva de imediato, porque bem embrulhada. Quem me puxou para cima do barranco, se me lembro bem, foi o Mônaco, o alfaiate Eduardo Mônaco, muito “antigo”, que significava sabidíssimo, como reservista do Exército.

…. então apertou-nos a fome, sem alimento que estávamos desde a tarde anterior. Andando de um para outro lado, como farejando um osso, cheguei à porta de uma casa rústica, superior às outras, porém. A porta de entrada era para uma sala com mesa de jantar e tinha uma porteira de ripas, pintadas de azul.. Olhei para dentro e vi nas paredes recentemente caiadas alguns quadros com hinos e alguns motivos protestantes, e estava olhando quando apareceu o dono, com ares de desconfiado. Tive a impressão de que acabara de tomar café, e minha fome aumentou, roendo- me cruelmente.

Então – Deus do céu – o pecado da hipocrisia me assaltou. Lembrei-me da minha meninice no Colégio Piracicabano, de Miss Moore, Miss Ross, Miss Phillips… E dirigi-me àquele homem , em que via uma refeição: “Gosto muito desses hinos, mas prefiro outro (e cantei cinicamente)

“vinde meninos, vinde a Jesus, Ele vos deu a benção da cruz”. A portinha abriu-se mais azul ainda e fui convidado a entrar, com o nome de “irmão”… Cantei mais: “Ao pé do trono de Jesus muitas crianças estão”. Abençoadamemória de trinta e seis anos! Abençoado Colégio Piracicabano!

Meu inesperado irmão indagou-me se tinha fome. Não podia acudir a todos os bravos voluntários, mas haveria para mim o suficiente. Chá a vontade, pão amanhecido, mas bastante. E eu que não como pão fresco! Guardei um pedação para meu filho Pahite e me fartei. Eis que vieram chamá-lo. Saiu pedindo-me que o esperasse. Demorou- se, entretanto, e tive que sair

apressadamente para reunir-me à tropa, em chamada para partida. Cartas que escrevi para a usina, indicando um senhor assim e assado, não tiveram resposta. Não tive dinheiro para ir até lá, agradecer aquele que matou minha fome. A fome, má conselheira, que me fez enganar um semelhante, valendo-me de sua religião. Pela fome que me varava, terei perdão?”

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