Coitado do tio Juquinha (1)
Ainda estava escuro quando, na manhã de 11 de novembro de 1899, ele deixou o sítio onde morava para pegar, na estação de Rio das Pedras, no interior de São Paulo, o trem com destino à capital. Pretendia uma vez mais se entender com os credores hipotecários, comissários de café em Santos, a fim de ver se deles obtinha prorrogação de prazo para o pagamento da dívida. Há meses sentia a catástrofe se aproximar: a formação da lavoura de café, que tantos anos de trabalho lhe custara, estava condenada ao fracasso. Suas noites eram só insônia e desespero.
José de Almeida Sampaio, o Juquinha, era conterrâneo, primo e amicíssimo de José Ferraz de Almeida Júnior, e muito o ajudara quando este último retornou do estrangeiro e se instalou em Itu, antes de se transferir para São Paulo. Quando ia à capital, Juquinha frequentava a casa do primo, a quem pedira que acolhesse seu filho Renato. Desta vez, porém, não imaginava encontrá-lo em seu estúdio, na rua da Glória, nº 74, onde costumeiramente se alojava. O cunhado Ladislau lhe informara que o pintor havia se ausentado; deixara o menino a seus cuidados, encarregado de comunicar ao pai que abandonara a capital em razão da peste bubônica que se alastrava na cidade; dirigira-se à fazenda Boa Esperança, onde pretendia demorar-se um dia em visita à família de Juca, para depois partir para São Pedro, onde almejava permanecer por um tempo.
Juca gostava da companhia do primo famoso, onze anos mais velho que ele, então com 38 anos; naquele parente encontrava a figura paterna atenuada pela camaradagem e aureolada pela notoriedade. Oriundos do mesmo rincão interiorano, compartilhavam afinidades, davam-se bem e eram íntimos. A crônica da cidade, mesclada à história de ascendentes comuns, lhes proporcionava assuntos para conversas infindáveis, às quais se somavam as confidências do pintor, que estudara cinco anos no Rio de Janeiro, na Academia Imperial de Belas Artes, e seis em Paris, sob orientação do pintor neo-clássico Alexandre Cabanel. Admirava o talento do primo, que tanto encantara o imperador: ao deparar-se com um quadro de sua autoria na inauguração da Mogiana, Sua Majestade decidiu lhe subvencionar uma viagem à Europa, em 1876, quando o artista completara 26 anos.
Em abril de 1884, dois anos depois de retornar, Almeida Júnior é assim descrito pelo jornal Imprensa Ytuana: “Modesto no porte, simpático no trato, olhar firme e seguro, lábio trêmulo e sensual, apenas sombreado por ligeiro buço, imberbe, cabelo redemoinhado sobre a direita e contornando uma fronte espaçosa que se enruga rapidamente quando o artista está animado, a sua fala descansada de paulista discorre sobre sua arte, louva os quadros dos amigos e admira os primeiros mestres.” O articulista e poeta Ezequiel Freire, que o conheceu, diz dele, em depoimento de 1910: “[…] retraído, cismador, contemplativo, de feições acentuadas a que a extrema mobilidade dos músculos dá uma original expressão inteligente. Pele morena, luzente, barba escassa, como os caipiras que retratou, estatura meã, atitudes curvilíneas, marcha ondulada e ritmada.” Juquinha, o primo mais moço, não poderia destoar muito. Um pouco mais expansivo, talvez? Baixo também, mas atarracado e bem mais forte, tinha a polidez e a reserva de sua gente, sem deixar de ser o que de fato era: um agricultor, rude e determinado, pioneiro no avanço dos cafezais pela “Boca do Sertão”, como era conhecida a zona de Itu em direção a Piracicaba. É assim, aliás, que é retratado pelo pintor numa tela de piquenique no Rio das Pedras, de viés, de terno branco, linho 120, com uma garrafa na mão.
Nessa viagem a São Paulo, ensaiava um último e difícil lance, nele empenhando suas fichas derradeiras. Viajava de fato para tratar de seus interesses? Acalentaria a ilusão de que uma última cartada ainda seria viável? Ou dentro de si já admitia que perdera o jogo e se sentia inapelavelmente derrotado?
*Continua
NOTA: José de Almeida Sampaio – Juquinha para os íntimos – era o irmão mais moço de minha bisavó materna, Francisca Eugênia Sampaio Góes Paes de Barros. A figura de Almeida Júnior era execrada na família. Meu sogro, cuja mãe – tia Luizinha de Almeida Sampaio Lara – também era irmã de tio Juquinha, recusou-se a comprar algumas telas do pintor que lhe foram oferecidas por uma bagatela, por lealdade ao tio ultrajado.