Coitado do tio Juquinha (2)

5f76e407270e5ad407d56130447b640f-300x278Em 21 de setembro de 1899 escrevera a seu credor, Lara Campos, Toledo & Cia., comissários de Santos, uma carta em que se declarava insolvente e propunha a liquidação da hipoteca, com a entrega da fazenda; pedia uma reunião para o dia 31 do mesmo mês. Os termos da carta, bastante objetivos, escondiam uma jogada pueril: Juca suspeitava que o credor queria receber a dívida e não o imóvel, de sorte que, na reunião aprazada com os demais credores, esperava persuadi-lo a alongar o vencimento. Comerciantes experientes, os credores não caíram na inocente artimanha do agricultor. Não responderam à carta, tampouco se fizeram representar na reunião do dia 31. Diante do silêncio, Juca se descontrola e abre o jogo numa correspondência dolorosa datada de 3 de outubro, solicitando mais cinco anos para a quitação da hipoteca. Ainda sem resposta, em 3 de novembro ele remete outra carta para os comissários, reiterando o pedido e transferindo a reunião para o último dia do mês. Silêncio. Desesperado, resolve, em 11 de novembro, embarcar para São Paulo, visando tratar pessoalmente dos negócios. Na realidade, mesmo antes de embarcar, o mutismo dos credores lhe sinalizara a resposta negativa.

 

A viagem a São Paulo na verdade tinha uma finalidade secreta, embutida na intenção de pôr a termo seu problema econômico. Juca sentia que seu mundo particular desabava desgraçadamente também em outra vertente, muito mais atroz: além da traição que a vida lhe aprontara em sua luta para a formação da fazenda e o plantio do café, ele agora via assomar a provável traição da companheira. Haveria base na suspeita? Em depoimento prestado como testemunha no processo, Anna Brandina de Sampaio, irmã de Juca, afiança que “entre seu irmão e Almeida Júnior reinava perfeita amizade”, informando que, “na verdade, há cerca de um ano, mais ou menos, ele, indiciado presente, consultou-o sobre o comportamento de Almeida Júnior como amigo íntimo da casa, e ela, informante, recorda-se de então ele haver dito que confiava inteiramente na fidelidade de sua mulher, sendo esse também o juízo dela, informante”.

Várias testemunhas, porém, contestaram essa afirmação. João Baptista de Castro, hoteleiro, natural e residente de Piracicaba, asseverou que corriam boatos “de manter Almeida Júnior relações amorosas com a mulher do denunciado, segundo ouviu dizer, como soube também por ouvir dizer por diversas pessoas que tais relações já existiam há muito tempo”. Alonso de Carvalho, outro depoente, lavrador em Itu, disse saber “que Almeida Júnior tinha antiga amizade com o acusado, que era seu parente e cuja casa costumava frequentar e que ouviu o irmão do acusado, de nome Antônio de Almeida Sampaio, dizer a ele, depoente, que há anos havia prevenido seu irmão contra aquela amizade, e o dissera na presença de outras pessoas, se bem que não se lembrava se declinara os motivos de sua desconfiança”. Outra testemunha, o sr. Antônio de Mello Cotrim, natural de Tatuí, confirmou que “o motivo verdadeiro do crime era o fato de existirem relações ilícitas entre Almeida Júnior e a mulher do denunciado” e que isso “já era coisa velha, de modo que não se surpreendeu com o acontecimento e logo presumiu quem seria o autor do delito”.

Todas essas certezas e convicções só viriam à luz e ganhariam comprovação após a tragédia. Antes suspeitas vagas, sussurradas nos cantos dos salões das casas e do clube, os comentários mordazes ditos em voz baixa no jardim da praça ou no pátio da igreja finalmente lhe chegaram aos ouvidos. Homem reto, não se deixaria abalar pela maledicência. Mas a dúvida se alojara em seu espírito, por mais que procurasse olhar-se e olhar o mundo sem as lentes do ciúme. Não havia nada de concreto que embaçasse sua crença nesse amor único. A boataria provinha de uma comunidade tacanha. Reles. A suspeita, porém, não se dissipava. Juca escrutava, procurava apreender nas entrelinhas. Descobriu a mecânica voluptuosa de interpretar e deduzir. Desenvolveu uma imaginação retrospectiva prodigiosa e passou a detectar em fatos passados a presença dissimulada do desejo, como se a convivência com o amigo incubasse paixões imperceptíveis, unidas por um denominador comum: sequestrar o objeto de amor e dele dispor, com a vil conivência do objeto sequestrado. Lembrava quando a mulher demorara um pouco mais os dedos no braço do amigo, numa conversa, ou dera um beijo de despedida mais lento… Na ocasião, transformara todas as desconfianças em meras causalidades, que agora repatriava em meio a surtos de ira. Seria verdade? Mas e as provas? E se a investigação que silenciosamente vinha desenvolvendo se mostrasse frutífera, que atitude deveria tomar? Matar? A quem? Aproveitaria a chance de dar cabo à própria vida, já que os negócios também desandavam? Seis meses antes do crime Juca adquirira um punhal – segundo ele, para portar em viagens.

 

*Continua

 

NOTA: José de Almeida Sampaio – Juquinha para os íntimos – era o irmão mais moço de minha bisavó materna, Francisca Eugênia Sampaio Góes Paes de Barros. A figura de Almeida Júnior era execrada na família. Meu sogro, cuja mãe – tia Luizinha de Almeida Sampaio Lara – também era irmã de tio Juquinha, recusou-se a comprar algumas telas do pintor que lhe foram oferecidas por uma bagatela, por lealdade ao tio ultrajado.

 

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