Coitado do tio Juquinha (4)

5f76e407270e5ad407d56130447b640f-300x278Antes de embarcar, Juca enviou dois telegramas, um para a mulher, que se achava na fazenda Boa Esperança, e outro para seu cunhado, o dr. Octavio do Amaral. Convocava Maria Laura a se juntar a ele, no dia 13, em Piracicaba, no Hotel Central, com todos os filhos; ela lhe escrevera, dizendo sentir-se incomodada na fazenda, receando que a vinda do filho Renato pudesse trazer o contágio da peste bubônica; ao cunhado, chamava-o para lhe mostrar as cartas que encontrara e lhe comunicar a intenção de divórcio. No caminho, deteve-se em Jundiaí a fim de buscar a filha Zilda, aluna interna de um colégio daquela cidade; ato contínuo, rumaram para Piracicaba. Depois de se registrar no hotel e fazer uma rápida refeição com a menina, recolheu-se cedo, cansado. Não tinha certeza de que a família chegaria à cidade realmente no dia assentado, pois o telegrama que enviara naquela manhã talvez não fosse entregue no mesmo dia, uma vez que não havia portador diário da estação de João Alfredo para a fazenda Boa Esperança.

Mesmo assim, na manhã seguinte, depois de fazer um pouco de hora, procurou o dr. Francisco Antônio de Almeida Morato, futuro lente da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, com o qual, no entanto, não conseguiu falar. Dirigiu-se à rua Santo Antônio, nº 6, residência do dr. Prudente de Moraes, primeiro presidente civil do país, que após deixar o cargo reabrira banca na cidade com o genro João Domingues de Sampaio. Prudente de Morais era natural de Itu, e Juca o conhecia satisfatoriamente, se bem que não desfrutasse de intimidade, visto que as respectivas famílias mantinham relações de amizade cerimoniosa. Tocou a campainha e esperou alguns segundos, olhando a própria sombra no vidro esmerilado da porta. Uma empregada alta e negra o fez entrar e o conduziu ao escritório amplo, repleto de móveis escuros e pesados; atrás da mesa lotada de revistas e processos, uma cadeira de espaldar alto dava as costas a quadros com diplomas e fotografias; na frente da mesa, duas poltronas de couro. Sentou-se numa delas. Enquanto aguardava o advogado, ensaiou as palavras com que pretendia expor o caso: não poderiam ser nem descontroladas, que o expusessem ao ridículo, nem inexpressivas, a ponto de ocultar sua emoção e indignação.

Quando o presidente entrou na sala, com um pedido simpático de desculpa pelo atraso de minutos, Juca lembrou-se da tela, de corpo inteiro, que Almeida Júnior fizera do ilustre personagem, com base em fotografia, esboçando numa fresta da janela a fachada do antigo palácio do governo do estado, no velho Pátio do Colégio. Os cabelos de seu interlocutor, ainda que abundantes, estavam bem mais grisalhos e a barba totalmente branca; em sua fisionomia, traços de uma velhice prematura ausente no quadro, mas ainda o vigor físico e moral retratado anos antes. Juca relatou os fatos e mostrou a correspondência; Prudente de Morais ouviu tudo em silêncio, depois sintetizou a situação com objetividade: as cartas eram prova suficiente das relações ilícitas mantidas por sua mulher e legitimavam o pedido unilateral de divórcio perpétuo ad thorum et habitationem, sem rompimento do vínculo matrimonial. A manifestação da esposa na petição, ainda que desnecessária perante a lei, era aconselhada, caso o marido intentasse uma separação amistosa – e aqui Juca o interrompeu para informar que Maria Laura estava a caminho. Dado o teor das mensagens, o presidente não tinha dúvida de que, se quisesse, Juca poderia ficar com a guarda dos filhos menores; e, como eram casados em comunhão universal de bens, caberia também pensar na partilha. Juca saiu satisfeito da entrevista, julgando que o advogado tratara a questão de maneira neutra, abstendo-se de fazer qualquer comentário constrangedor.

De volta à cidade, encontrou-se, por volta das duas e meia da tarde, com Alonso de Carvalho, também lavrador em Itu, que o convidou para um café em sua casa. Ao cruzarem o largo do Hotel Central, porém, resolveram entrar, pois Juca, que não tomara o desjejum, desejava uma média e algum biscoito. Ficaram por lá, na sala de jantar, a conversar, junto com o dono do hotel, sobre o aperto financeiro do fazendeiro. Só depois, numa leitura retrospectiva, é que se notaria a franqueza incomum com que Juquinha, de natural tão discreto, expusera seus problemas pecuniários. Destoava de sua costumeira cartilha reservada. Parecia distante, frágil, com a lucidez levemente sobrenatural daqueles que, depois de uma noite em claro, saem à rua e percebem luzes e formas com uma nitidez quase dolorosa. Comentava seu infortúnio na condução da lavoura como se falasse de outra pessoa, talvez para matizar o panorama sombrio que apresentava a seus interlocutores, pontuado de suspiros.

 

Ouviu-se um carro à porta do hotel. Segundo uma das testemunhas, o copeiro Silvério Francisco Ferreira, surgiu o vulto de uma senhora na entrada do estabelecimento; era Anna Brandina, irmã de Juca, que perguntava se o irmão havia chegado. A senhora já adentrava a sala de jantar do hotel, entregava ao copeiro uma valise e interpelava sorridente o irmão, que se levantava para saudá-la: “Então, seu patife, por que não foi à estação?” Atrás dela vinham as crianças e Maria Laura, que se adiantou para cumprimentar o marido. Dando as costas à esposa, Juca abraçou rapidamente a irmã e precipitou-se em direção à porta principal.

Ali avistou Almeida Júnior, prestes a entrar no casarão, depois de pagar o cocheiro que os trouxera da estação da Estrada de Ferro Ituana. Descendo a escada aos saltos e empurrando a porta de vidro do corredor de entrada, Juca levou a mão direita à cava do colete para sacar o punhal e se atirou sobre o primo, que estava próximo ao batente da porta. Passando-lhe o braço esquerdo pelas costas, imobilizou-o e cravou-lhe o punhal na região supraclavicular esquerda. Jogando todo o peso contra o rival, Juca derrubou-o na calçada, mantendo-o subjugado entre as pernas enquanto afundava a lâmina, de cima para baixo, em busca da carótida. Rodou a arma, que se partiu no cabo, e sentiu rasgarem-se os tecidos entre a traqueia e a faringe, lesando os vasos grossos da região. Um líquido quente e viscoso escorreu por seu pulso, empapando também a camisa do ferido; era com prazer selvagem que perquiria o pavor estampado nos olhos do rival e acompanhava os esforços desesperados que o outro fazia para se desprender.

Juca pensou ouvir os ruídos das próprias mandíbulas e sentiu aflorar uma espuma na comissura da boca. Lembrou-se da frase que planejara dizer na ocasião e disparou: “Miserável, me roubaste a honra, mas não me roubaste a vida.” A voz saiu muito baixa e lhe soou frouxa, como se envergonhada da frase extravagante, então ele a repetiu, dessa vez aos berros, para que todos a ouvissem e dela não se esquecessem. Permaneceu um tempo sobre a vítima, a mão grudada no que restava do cabo da faca; tanto procurava conter Almeida Júnior como resistir aos esforços de duas pessoas, que sabia serem sua irmã e sua mulher, que tentavam arrancá-lo dali. Até que por fim as mulheres, ajudadas por Alonso de Carvalho, conseguiram alçá-lo e o conduziram para dentro do hotel. Na rua, o pintor, que se levantara e sacara um punhal, ensaiou um passo, vergou os joelhos e desfaleceu no lajeado da sarjeta. Uma senhora que passava de carro lançou gritos apavorados.

O ato fora tão rápido que ninguém, salvo o copeiro, presenciara o golpe fatal. Os depoimentos registram os fatos imediatamente posteriores. Antônio Alfredo Coelho, lavrador de 28 anos que se encontrava no jardim público defronte do hotel, disse que se aproximou ao ouvir gritos, vendo, junto à porta de entrada, a vítima ser amparada por uma senhora; ofereceu-se para substituí-la, no que foi auxiliado por Antônio de Mello Cotrim, um curioso que acorrera ao local. Francisco José Rodrigues, negociante, natural de Portugal, esclareceu que estava em sua loja quando, atraído pela gritaria, procurou verificar o que se passava na esquina do Hotel Central, onde deparou com um homem ferido, segurando uma faca e esforçando-se para entrar no estabelecimento, ao que se lhe opunha uma senhora loura e de pouca altura, que o amparava.

Felinto de Matos Brito, de 18 anos, afirmou que, ao passar pela rua Direita, ouviu a algazarra que partia da entrada do hotel, onde divisou um homem com uma faca, tentando em vão alcançar um grupo de três pessoas; o sujeito flexionou os joelhos e escorregou, sendo apoiado por Antônio Alfredo Coelho. Maria Laura confirmou que, auxiliada pela cunhada, tentou apartar o marido e retirou a arma que estava encravada no pescoço da vítima, arremessando-a à distância e solicitando socorro. Antônio de Mello Cotrim, que atravessava o largo da Matriz, escutou o vozerio e viu um homem ensanguentado com um punhal na mão; tomou-o pelo braço, retirou-lhe a arma e o sujeito caiu desfalecido. João Baptista de Castro, dono do hotel, que minutos antes estivera de prosa com Juquinha e Alonso de Carvalho, não presenciou a cena: com a chegada da família do hóspede, entrou para vestir um paletó, visto achar-se em mangas de camisa; ao ouvir os gritos da senhora e das crianças, voltou e deparou com Juca encostado na grade da escada; vislumbrou Almeida Júnior do lado de fora, escorado por duas pessoas. Foi então que tratou de conduzir d. Maria Laura para a sala de visita do hotel, onde se achavam a cunhada e os filhos menores. Alonso de Carvalho tampouco testemunhou o crime; espavorido pelo berreiro, tentou correr até o local, mas não o fez com a necessária prontidão – topando com as crianças no corredor, a espiar pela porta de vidro, ele saiu, tendo o cuidado de manter os pequenos trancados do lado de dentro; abalroado por José Leme do Prado e outros que procuravam conduzir Juca para o interior do estabelecimento, virou-se e avistou a silhueta de Almeida Júnior caído na rua. João Baptista de Castro, o proprietário, gritou pedindo que isolassem Juca na sala de jantar, enquanto acompanhava Maria Laura à sala de visita, onde já estavam Anna e as crianças; em companhia do dr. Joaquim da Silveira Mello, Theodomiro e Erasmo Ribeiro, ali se demorou, acomodando a família.

 

*Continua

 

NOTA: José de Almeida Sampaio – Juquinha para os íntimos – era o irmão mais moço de minha bisavó materna, Francisca Eugênia Sampaio Góes Paes de Barros. A figura de Almeida Júnior era execrada na família. Meu sogro, cuja mãe – tia Luizinha de Almeida Sampaio Lara – também era irmã de tio Juquinha, recusou-se a comprar algumas telas do pintor que lhe foram oferecidas por uma bagatela, por lealdade ao tio ultrajado.

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