Crianças iam e voltavam de trem para ter aulas no Chicó

Foto: João Paulo Tinoco/Olhares

Não são apenas os grandes escritores, intelectuais, jornalistas, que deixam registradas as impressões guardadas na memória. Pessoas sem intimidade com o universo artístico e literário, que viveram no entanto momentos privilegiados de um tempo, quando crianças ou jovens, também se manifestam, falando sobre bairros, festas, costumes e formas de ser de uma Piracicaba antiga.

Abaixo, relato de Antonio Marchini, que estudou no bairro Chicó ao início da segunda metade do século XX, tempos que ele descreve com detalhes. Chicó continua vivo. O acesso ao bairro se dá nas proximidades do Ceagesp, entre o Bairro Campestre e Rio das Pedras.

…”Eu nasci no Bairro da Água Branca. As crianças daquele bairro embarcavam no trem da Sorocabana, em uma plataforma ali no bairro e, juntos com as professoras, que vinham de Piracicaba, viajávamos até o Bairro do Chicó, onde desembarcávamos em outra plataforma, que ficava em frente do Grupo Escolar.

Assistíamos às aulas e fazíamos o caminho de volta pelo mesmo trem, desta feita trem de passageiros, porque o da manhã era de cargas. Por esse motivo, aos meus 16 ou 17 anos, fiz uma seresta para minha professora, cantando uma música que dizia assim: ‘de manhã no mesmo trem, rompe a alvorada ela vem rumo à escola a ensinar etc, etc.’ Quando o trem embalava na descida, sacudia tanto que a Dona Mariquinha rezava e chorava de medo mas , graças a Deus, só uma vez ele descarrilou, embora sem maiores problemas.

Naquela escola do Chicó, aprendíamos de tudo, muito além de ler e escrever. Aprendíamos religião, fazer horta, criar galinhas, etc. Tínhamos dois alunos que, orientados pelas professoras, faziam limpeza e curativos nos ferimentos dos alunos que, em sua maioria, freqüentavam a escola descalços. Eu mesmo fui, por um período, um desses enfermeiros com avental branco e cruz vermelha no peito e tudo mais. Meu primeiro diretor foi o Sr. Antônio e a primeira professora foi a Dona Amélia (tinha uma letra maravilhosa, parecia letra de máquina de escrever com estilo itálico).

A partir do segundo ano, minha professora foi substituída pela sua sobrinha, Dona Ione Telles Martins, para quem fiz uma serenata e cantei. Tempos de criança. Ela me telefonou agradecendo e dizendo que, por estar dormindo sob efeito de remédios, não me ouviu, mas que os vizinhos gostaram muito. Ela já estava muito doente e em pouco tempo se foi. Lembro-me ainda que, quando descíamos do trem, os alunos levavam as bolsas das professoras. Uma vez, coloquei a bolsa deitada na primeira carteira, mas dentro dela tinha um vidro de cola que derramou nos cadernos dos alunos e precisamos trocar todas as capas. Naquele tempo, todos os cadernos eram encapados.

Num determinado período, o nosso diretor foi o Professor João Chiarini e nossa escola passou a ter um diretório acadêmico, criado por ele, num salão entre o grupo e venda do Chicó. Eu nunca soube que uma outra escola primária tivesse um diretório acadêmico. Que orgulho! Mais tarde tive conhecimento que a escola do Chicó havia servido de laboratório para criação da Escola Normal Rural. Atualmente (2003), trabalho no bairro do Chicó e fico triste quando vejo o ônibus escolar levando os alunos do bairro do Chicó para as escolas da cidade. Acredito que deveria ser o contrário, pois acredito que os alunos da cidade, freqüentando a escola rural, poderiam ter despertada a vocação rural, o que ajudaria a desinchar as cidades. No meu tempo, o Grupão do Chicó recebia alunos dos bairros Campestre, Água Branca e até da cidade de Rio das Pedras. Os diretores, Sr. Antonio e João Chiarini, e as professoras, Dona Amélia, Dona Ione, Dona Mariquinha, Dona Maria Helena, Dona Jacira, Dona Maria José e os serventes, Eugenio e Angélico, no período de 1950 a1954 eram respeitados. Mas será que tinham justa recompensa financeira? Não sei, mas eles nos tornaram pessoas humanas exemplares…”

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