Minhas memórias de Piracicaba antiga (2)

Foto: Vieirinha/Olhares

Foto: Vieirinha/Olhares

2-CHUTANDO O SACO DAS CAVEIRAS

O mundo dos garotos sempre foi o mesmo, em todos os lugares e em todas as épocas: sonhos e imaginação fértil se misturando e tornando-o cheio de vida, marcando cada um de nós de forma diferente.

O nosso mundo não poderia ser outra coisa, especialmente à noite, quando todas as obrigações chatas já haviam sido cumpridas, e tínhamos que enfrentar as imensas levas de fantasmas e caveiras que aguardavam entocaiadas para pegar crianças distraídas e incrédulas.

Nosso poste, único no quarteirão da Prudente, sob a luz mortiça do qual ficávamos reunidos todas as noites das dezenove às vinte e duas horas, era uma espécie de local de encontro apenas nosso.

Dez… onze garotos, com idades variadas entre três e onze anos. Meninas não entravam no grupo pois eram muito chatas.

No mais das vezes, especialmente quando havia frio e nos sentávamos bem próximos um ao outro, nosso entretenimento era contar estórias terríveis, dessas que nos deixavam dias sem poder dormir sossegados. Geralmente estórias de assombrações, de almas que vinham atormentar pessoas desprevenidas, caveiras brancas e com os ossos fazendo horríveis ruídos de chocalhos, que também ficavam à nossa espreita para saltarem sobre nós na primeira oportunidade em que estivéssemos distraídos.

Este caso se deu no inverno de 1944.

Nós estávamos sentados sob a luz do poste, falando de caveiras e fantasmas que seguramente estavam por perto. Os olhares ressabiados, penetrando na escuridão de ambos os lados da rua Prudente, para além da Santa Cruz e da José Pinto de Almeida.

Podíamos divisar sombras brancas de almas penadas caminhando apressadas pela rua, e os ouvidos atentos podiam escutar lamentos profundos e agoniados, que nossos pais diziam ser apenas de gatos.

Quem provocou foi Didi:

• Insto… você tem coragem de entrar no cemitério à noite e sair no muro do lado oposto?

• Claro que tenho… aposto uma gengibirra…

Podiam apostar à vontade, de gengibirra à uma fazenda, pois que nunca ninguém pagava nada.

E lá fomos nós todos, dez ou onze garotos, subindo pela mais que soturna Rua Prudente, que a partir da S.João não era mais rua porém picada, feita em meio a um enorme bambual que, ao vento, parecia soprar frases de outro mundo em nossos ouvidos.

Todos assobiando, menos eu que não conseguia, pois que era sabido que os fantasmas e caveiras por alguma razão se afastavam quando as pessoas assobiavam.

Chegamos ao bosque do cemitério, hoje Estádio Municipal: mata fechada, com picadas entre as árvores, mas já podendo divisar o longo muro amarelo que dava para a hoje Avenida Independência, poeirenta, escura, assombrada em cada touceira de capim alto, em cada árvore existente em suas margens.

Insto chegou, viu o muro e argumentou, meio arrependido, que era muito alto para ele, melhor sendo que voltássemos ao nosso poste. Não era alto, contudo, especialmente para Insto, habituado a subir em telhados de casas, correr em cima de muros etc.

Quando disse isso, Didi caiu sobre ele chamando-o de covarde e querendo cobrar a gengibirra. Com a insistência dos outros, Didi e Tinho fizeram anquinha e Insto foi colocado sobre o muro. O garoto estava lívido, branco como cera de vela de defunto, exigindo silêncio de todos nós, enquanto seus olhos tentavam penetrar naquele imenso negrume onde pululavam caveiras de todos os tipos e tamanhos. Depois de muito perscrutar, de um só salto pulou para dentro do cemitério e se pôs a correr no sentido do muro oposto. Nós corremos por fora, rodeamos a área e fomos esperá-lo lá onde iria sair.

Podia-se ouvi-lo chegando, pelo assobio trêmulo que vinha aumentando de volume rapidamente, até que suas mãos apareceram no muro. Tentando ajudá-lo, Didi pegou as mãos para puxá-las para cima, o que valeu um urro enorme do Insto, seguido de outro do Didi, suficientes para que ambos corressem em sentidos contrários, até que Insto colocou a cabeça sobre o muro e ergueu rapidamente o corpo. Havia ganho a aposta, mas não a gengibirra, que para ser paga teria que ser sacada no tapa, o que só aconteceu no dia seguinte.

Insto virou herói novamente para todos nós.

Voltando pela mesma trilha do bosque, eis em detalhes o que lhe acontecera lá dentro, contado por ele mesmo:

-“assim que pulei lá dentro, saíram de trás de um túmulo duas caveiras, uma grande e uma pequena, de criança, com os braços levantados à altura dos ombros, emitindo um lamento horrível e com os olhos brilhantes como lanternas… quando eu parei assustado com elas, para perguntar o que queriam de mim, senti uma mão ossuda pegando em meu ombro por trás… virei-me rapidamente e percebi que era uma outra caveira que me agarrava… então dei um chute bem no saco dela, e enquanto ela caiu se contorcendo de dor, saí correndo para o outro lado…

 

Condensada do livro SANTOS, Wladir dos, CONTANDO CASOS. Max. 1986. SPWladir dos Santos é piracicabano, professor, historiador, atualmente residindo em Americana

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