Salgot: “a história da cassação do meu mandato compromete os homens do MDB daquele tempo”

A reportagem abaixo foi publicada em agosto de 1987 no semanário impresso A Província. Recuperamos para lembrar os 30 anos de atuação em Piracicaba. Preservamos o depoimento na íntegra, mantendo inclusive às citações referentes a datas. (Ou seja, todo o texto deve ser lido considerando que o ano de autoria é 1987)

salgot-foto-2

A PROVÍNCIA, dentro de sua proposta editorial, pretende ser um instrumento eficiente para que se resgate parte da memória piracicabana que se vai perdendo e para que se mantenha sólida aquela que ainda se mantém por inteiro. Para isso, estaremos apresentando uma série de depoimentos de pessoas que participaram da história de Piracicaba e que, nos mais variados setores das atividades humanas, foram agentes de nosso desenvolvimento e de nossas transformações.

Francisco Salgot Castillon foi o escolhido para abrir a série de depoimentos que pretendemos apresentar ao povo piracicabano e especialmente às novas gerações. Por que Francisco Salgot Castillon?

Simplesmente por ter sido ele um dos atores principais da cena política piracicabana nos últimos 40 anos, o período histórico das grandes transformações que ecoaram também em Piracicaba. A liderança política de Salgot Castillon, por suas características especialíssimas, deve merecer um estudo mais aprofundado por parte dos cientistas políticos, pois Salgot Castillon conseguiu revelar-se um fenômeno político que não encontra paralelo na formação dos homens públicos brasileiros.

Sendo líder e presidente da antiga UDN em Piracicaba, um partido conservador e até mesmo rançoso, com profundas marcas de “Antipovo” desde o suicídio de Getúlio Vargas – Salgot Castillon foi, ainda que dentro da UDN, o mais populista dos políticos piracicabanos, no paradoxo de um homem da UDN ser amado pelas classes operárias, sindicais, pela população rural, pelo povo simples da periferia e ser combatido pelos grupos conomicamente poderosos. De um partido considerado de elite, Salgot foi o homem das massas populares, uma liderança que impôs pela credibilidade que lhe foi confiada pelo homem anônimo do povo.

A trajetória política de Salgot Castillon foi um somatório de aparentes contradições: de um partido de elite, era eleito pelas classes trabalhadoras e populares; depois, presidente da ARENA e eleito prefeito por aquela legenda, um partido criado pelo regime militar, foi cassado pelos militares por exigência do então MDB de Piracicaba. Na cena política, Salgot Castillon foi o principal ator como líder popular e homem público nestes últimos 40 anos. Com ele,  APROVÍNCIA inicia os depoimentos que pretende levar a público a partir desta edição.

A PROVÍNCIA — Qual é a verdadeira história da cassação de seu mandato de Prefeito Municipal de Piracicaba em outubro de 1969? 

SALGOT CASTILLON — É uma história de grandes interesses políticos municipais que, na verdade, teve início quando me elegi prefeito pela primeira vez, despertando a rivalidade de forças que passaram a se opor a mim pela ousadia que tive de tê-las enfrentado. Em 1959, quando se discutia a sucessão de Luciano Guidotti, partidos políticos e algumas forças piracicabanas haviam decidido que as eleições deveriam acontecer com uma candidatura única, e o nome indicado era o de Domingos José Aldrovandi, tendo como companheiro de chapa o industrial Humberto D’ Abronzo. Eu não me opunha a Aldrovandi, que era tido como o homem com o perfil administrativo de Luciano Guidotti, e o objetivo, portanto, era o da continuidade administrativa. Eu me opunha a alguns aspectos da administração de Luciano que, tendo feito verdadeira revolução na cidade, houvera esquecido a zona rural de Piracicaba, grandemente povoada àquele tempo. E, por outro lado, repugnava, como acontece ainda hoje, qualquer ideia de candidatura única. Ora, havia, ainda, a clara evidência de que Luiz Dias Gonzaga, antigo prefeito, seria candidato caso se confirmasse a candidatura de Domingos José Aldrovandi. Foi, então, que, depois de uma conversa pouco amistosa com Luciano Guidotti, a situação tornou-se irreversível: exigia-se a minha renúncia como candidato a candidato, com a ameaça de que eu seria esmagado pelo poder econômico. Ora, havia um ideal político de uma administração social, eu tinha o total apoio do meu partido, a UDN, e acabei tendo a motivação final, que foi o desafio à minha capacidade de vencer os poderosos que acreditavam poder esmagar-me com o peso do dinheiro. A partir daí, as forças se radicalizaram e, então, a política piracicabana se dividiu entre os que me apoiavam e os que apoiavam Luciano Guidotti.”

De prefeito a deputado 

SALGOT CASTILLON — A minha primeira administração foi marcada por uma oposição ferrenha e violenta, por uma Câmara Municipal com vereadores que me hostilizavam e que eram frequentemente aliciados por meus opositores. Havia acontecido a renúncia de Jânio Quadros, o país estava em efervescência e, em São Paulo, o governador Carvalho Pinto esforçava-se para eleger, em 1961, o seu sucessor, o secretário José Bonifácio Coutinho Nogueira. Contra José Bonifácio, erguiam-se verdadeiros gigantes do voto popular, Adhemar de Barros e Jânio Quadros. Era preciso, ao mesmo tempo, eleger José Bonifácio e derrotar Adhemar, ainda que houvesse uma brecha para Jânio Quadros. E muitos prefeitos amigos de Carvalho Pinto candidataram-se a deputado estadual, como foi o meu caso. Fui eleito e, deixando a prefeitura, aconteceu a nova e natural recomposição de forças partidárias. Com a revolução de 1964, a situação voltou a conturbar-se, houve novas composições e entendimentos, mas a divisão do eleitorado piracicabano entre os que me apoiavam e que estavam ao lado de Luciano Guidotti – novamente eleito prefeito – permaneceu quase a mesma, disputei novamente a deputação estadual me reelegi em 1965, e, tendo sido prorrogados os mandatos de prefeitos, acreditei que poderíamos chegar a um entendimento político, em, Piracicaba, para as eleições de 1968. Mas as rivalidades eram intensas demais, um tempo em que a política era mais passional do que hoje. E eu não pude concordar com a candidatura de Humberto D’ Abronzo, que estava na presidência do E.C.XV de Novembro, a prefeito de Piracicaba. Não que eu tivesse algo pessoal com D’ Abronzo, mas porque tinha certeza de que, se aquilo acontecesse, o pior haveria de vir para Piracicaba, pois D’Abronzo se deixara cercar de homens que não haveriam de entender o povo naquele momento político. Ora, eu estava reeleito deputado, com mandato garantido, não tinha qualquer pretensão de ser candidato a prefeito. Mas havia toda uma filosofia política em jogo e não poderíamos acatar passiva e simplesmente a candidatura de Humberto D’ Abronzo que tinha o apadrinhamento de Luciano Guidotti. Adotei, então, a estratégia de permitir que se ventilasse o meu nome como candidato de forma que eu pudesse, assim, ter condições de conseguir a renúncia de Humberto D’Abronzo e, a partir daí, mostrando-se candidato, chegar a um entendimento político com Luciano Guidotti.”

Como o XV complicou tudo 

SALGOT CASTILLON — Herbert Levy, que ainda está vivo, era Secretário da Agricultura de São Paulo, no governo Abreu Sodré. Ele foi testemunha do encontro que mantive com Humberto D’ Abronzo naquela Secretaria. Expus a D’Abronzo o meu ponto de vista, a necessidade de que ele renunciasse à sua candidatura para que encontrássemos uma outra solução. Irredutível a princípio, D’Abronzo acabou tornando-se mais acessível à ideia e, finalmente, me expôs a dificílima situação em que se encontrava o E.C.XV de Novembro, de que ele era presidente. O XV, um patrimônio da cidade, estava falindo, e eu não tive qualquer dúvida em lhe prometer que, se viesse eu a ser o próximo prefeito, haveria de encontrar uma solução para que a Prefeitura colaborasse com o XV, como ainda hoje se faz. E assinei o compromisso que fizera a D’ Abronzo para auxiliar a XV de Novembro. Por outro lado, ele amadureceu a ideia e, algum tempo depois, renunciou às suas pretensões como candidato, abrindo possibilidade para encontrarmos, com Luciano Guidotti, um candidato comum, num novo acordo e entendimento político. Mantive, como ficara combinado, a minha candidatura como instrumento para um acordo: se chegássemos a um candidato que interessasse a Piracicaba e que unificasse a ARENA — pois havia, então, apenas ARENA e MDB – eu renunciaria. Marquei uma reunião com Luciano Guidotti, através de amigos, num domingo. E aconteceu a fatalidade: antes de nosso encontro, Luciano faleceu subitamente, deixando a cidade enlutada e os políticos perplexos. Era como se o destino mexesse, novamente, os cordões para que Piracicaba permanecesse atribulada.”

Salgot e João Guidotti 

SALGOT CASTILLON — Depois que o traumatismo que a morte de Luciano causou em todos e quando já havia uma certa aceitação da fatalidade, a herança política de Luciano Guidotti começou a ser canalizada em direção a João, seu irmão, que era amigo do governador Laudo Natel. Acreditei que eu pudesse ter, com João Guidotti, o diálogo que não pudera ter com Luciano. O jornalista Maurício Cardoso foi testemunha: estive na casa do João Guidotti, com as mesmas preocupações anteriores. Mas João acabou sendo ríspido e intolerante, pois já articulava a sua própria candidatura apesar de parecer do Tribunal, que depois foi dado, de que ele era inelegível, pois irmão do prefeito que morrera. Resultado: não houve acordo e a campanha política acabou encontrando-se em disputa eu de um lado, João Guidotti do outro. Foi uma campanha terrível, ocorrendo tudo aquilo que eu previra: Piracicaba dividida, o radicalismo aumentando, as hostilidades crescendo, um clima em que era impossível qualquer entendimento ou diálogo. Fora exatamente como eu temia. Mas venci as eleições. E, embora sendo deputado pela ARENA, já durante a campanha política se falava claramente que eu estava sendo denunciado aos militares como “subversivo”, pois eu sempre estive ao lado da classe operária e participei de algumas delas, inclusive a dos ferroviários quando, para impedir fosse a greve furada, deitei-me na linha do trem. Tudo aquilo era motivo para incompatibilizar-me com as forças militares e, mesmo antes de minha posse, os homens do MDB de Piracicaba –  que tinham trânsito no governo – queriam impedir a minha diplomação. Amigos meus começaram a defender-me junto ao Ministro Gama e Silva, da Justiça, então, provando o meu passado democrático ainda que de centro-esquerda, político reconhecidamente populista que sempre fui. Finalmente, o meu processo de cassação acabou na mesa do presidente Costa e Silva que o interrompeu. Tomei posse, fui diplomado, comecei a exercer o cargo de prefeito mas a campanha para cassar-me o mandato e os direitos políticos orquestrou-se ainda mais a partir da enfermidade que afastou Costa e Silva do governo e que o levou à morte. Era a Junta Militar quem decidia tudo, e a pressão continuou. Nada tinham a provar contra mim, até que apareceu o documento em que eu me comprometia a colaborar com o XV de Novembro. Mas antes disso até livros da prefeitura de Piracicaba eram levados, por homens do MDB e da ARENA que comigo não se afinavam, ao coronel Cerqueira Lima, que comandava o 5R G-Can. Queriam a minha cassação a qualquer custo, o ódio era incontrolável. E então, o documento do XV…”

A devassa 

SALGOT CASTILLON — Houve, em 1969, uma devassa do Exército sediado em Campinas e da Polícia Federal em Piracicaba, e a alegação era a de fraudes em imposto de renda, argumento que fez pressão política. Romeu Ítalo Rípoli, que era vereador, e Humberto D’Abronzo viram as suas casas e as suas vidas vasculhadas. Coincidentemente, eles também eram pessoas que alimentavam os ódios dos que queriam a minha cassação. E, nos documentos de Humberto D’ Abronzo, foi encontrado o compromisso que eu firmara de, sendo eleito, auxiliar o XV de Novembro. Em nome da memória de D’Abronzo, posso afiançar que ele nada pediu além disso, e que nem mesmo chegou a cobrar-me o compromisso. Por causa do XV, finalmente encontraram o motivo para cassar-me: houvera, segundo eles, corrupção eleitoral. E eu fui cassado.”

A prisão em 1970 

SALGOT CASTILLON — Sim, eu fui preso em 1970, juntamente com os prefeitos de Limeira — que era o Jurandir Paixão — de Leme, Arara, que estiveram na mesma cela minha no 5º G-Can. Até hoje não sei e nem eles sabem por que fomos presos. Eu já havia sido cassado, estava proibido de fazer política. Falou-se que, em 1970, quando se caçavam bruxas, eles queriam impedir que as lideranças cassadas influíssem nas eleições daquele ano. Eu estava em minha casa, à noite, quando dois militares à paisana bateram à porta: “Acompanhe-nos”, disseram, alegando que eu estava detido. Quis que me levassem no dia seguinte, mas forçaram a minha ida. Fiquei na Delegacia de Piracicaba e, tarde da noite, levaram-me para Campinas, colocando-me numa cela com aqueles companheiros. Durante cinco dias, ficamos detidos. Havia um certo tenente Argos que me detestava já há algum tempo. A comida que nos serviam era um lixo. E, um dia, quando o tenente Argos apareceu próximo da cela, chutei toda a comida, xinguei, desafiei-o com palavrões, mas ele fingiu que não escutava. Enquanto isso, o Cássio Padovani, que era meu vice-prefeito e que assumira a Prefeitura, fazia tudo para me libertar. A Ladice estava desesperada, os meus filhos também, eu era homem sem qualquer mandato político. Até que o Coronel Rubens Restell — um cavalheiro, homem refinado — chamou-me da cela. Em seu gabinete estavam o Cássio Padovani e Natalina sua esposa, e a Ladice, minha mulher. Eles me esperavam. O Coronel Restell estava libertando-me. Mas ele queria, em nome do Exército, pedir desculpas a minha esposa, a mim, e a Piracicaba por tudo o que acontecera. Segundo ele, tudo não passara de um lamentável equívoco.”

Salgot

salgot-foto-1

Francisco Salgot Castillon nasceu na Espanha, na cidade de Centelhas, Catalunha, filho de Antonio Salgot e Rosa Castillon. Aos dez anos de idade, acompanhado de seu tio padre, Martinho Salgot, transferiu-se para o Brasil, fixando residência inicialmente Antônio da Posse e depois em Rio das Pedras.

Frequentou o Seminário Diocesano de Campinas e, em Piracicaba, tendo deixado o seminário, o Comércio Escola Moraes Barros, Colégio Piracicabano e Escola Normal. Formou-se engenheiro civil pela Escola Nacional de Engenharia do Rio de Janeiro, a primeira do Brasil.

Casou-se, em 1948, com Ladice Soriano, tendo os filhos Francisco Sérgio e Lídice. Sua Irmã Dolores acompanha-o ainda hoje. É engenheiro civil por profissão e político por vocação.

Foi eleito duas vezes vereador (52/56 e 56/59) no tempo em que vereador não tinha remuneração, sendo cargo de serviço. Foi Prefeito de Piracicaba pela primeira vez no período 1960/62. Em 1962, elegeu-se deputado estadual, reelegendo-se em 1966. Em 1969, voltou ao Executivo como Prefeito novamente de Piracicaba. Em outubro do mesmo ano foi cassado pela Junta Militar que substituiu o presidente Costa e Silva.

Deixe uma resposta