Tipos Inesquecíveis (4)

Noite dessas, eu vi na TV um jornalista esbravejando contra o governo do estado que, em pleno mês de abril, ainda não havia enviado uniformes e materiais para os alunos de uma escola da cidade de São Paulo. Foi o que me fez recordar da minha e de muitos alunos da pobre infância dos anos 40, quando nossos pais é que faziam os uniformes e compravam os livros escolares, novos nas livrarias, ou usados de outros alunos que passavam de ano. Hoje, existem até refeições grátis, nas escolas. Em nosso tempo, o máximo que conseguíamos era leite com baunilha, que achávamos uma delícia, servidos em copos de alumínio, de vez em quando. Isso no curso primário do Sud, para as crianças, com suas calças curtas azul marinhas e camisas brancas. Saias idem, para as meninas, que não podiam se misturar com os meninos, separados por um muro. Foi no Sud da minha infância, que a dentista da escola me apresentou à raiz do meu primeiro dente, arrancado a supetões, sem o menor motivo, talvez porque ela não o achasse simpático. Assim como eu me lembro do desespero estampado no rosto do meu até hoje grande amigo Celso Rizzi, atirado ao chão, no meio do corredor, agredido que fora pela sua professora, de outra classe que não a minha. Nem tudo era risonho e franco no Sud, justamente naquela época em que as crianças eram cordiais e educadas. Por que, justamente o Celsinho?

Mas, o ambiente também era acolhedor e me lembro da dona Tita Spalini, dos primeiros e segundo anos e da dona Helena Dutra, dos terceiro e quarto anos, muito carinhosas, às quais eu presenteava com volumosos buquês de hortência, que cresciam em abundância, na chácara onde morava.E dos colegas, muitos que hoje me fogem da lembrança, mas alguns inesquecíveis.

Eu sempre gostei de música, mas nunca tive talento para conseguir tocar nenhum instrumento, de gaita a violão. Ao me aposentar, resolvi comprar um teclado, achando que agora, sem ter mais as preocupações do trabalho, conseguiria, enfim, mostrar o meu talento musical a alguém, ou a mim mesmo. Pois o danado do teclado permanece mudo e virginal, ao toque dos meus dedos, como no dia da sua aquisição. Há alguns meses, um pintor de paredes, que trabalhava em minha casa, começou a me falar dos seus dotes musicais e que praticamente dominava uma variedade de instrumentos. Pensei em acabar com o seu papo e apresentei a ele o meu teclado. E não é que o pintor sentou-se na frente, e me perguntou qual música gostaria de ouvir… e, profunda humilhação, foi atendendo a todos os meus pedidos?!

Voltando aos velhos tempos, o João Chiarini costumava dizer que um piracicabano, proprietário de um salão de barbeiro, que existia no Largo da Catedral, ao lado da Casa Edson, do Sebastião Tatu, foi também músico e inventor do chuveiro elétrico. Pois esse senhor era justamente o pai de um coleguinha do curso primário – Celso Porta Woltzenlogel, que justamente na festa da nossa formatura do curso primário, em pleno salão nobre, viria a me surpreender tocando, com sua flautinha de lata a música “Pirata da Perna de Pau”, então um sucesso carnavalesco da época.

Confesso a minha inveja e como flautinha de lata era um instrumento baratinho, convenci minha mãe a comprar uma para mim, a qual, antevendo a minha nulidade musical, não se dispôs a me conceder um mínimo acorde digno de registro, acabando jogada em um canto qualquer.

Durante todos esses longos anos, eu não mais vi o Celso Woltzenlogel, mas venho acompanhando seu sucesso como flautista, recebendo prêmios, viagens de estudos, participação no Quinteto Villa Lobos, em grandes orquestras e acompanhando os verdadeiros ídolos da música popular brasileira. Viaja constantemente ao exterior, por todos os países da Europa, como músico de reconhecido mérito e talento.

Depois de sessenta anos eu voltei a ver o Celso Woltzenlogel, na última sexta-feira, na Escola de Música, onde esteve a fim de demonstrar seu método “Flauta Fácil”, uma sua criação destinada a provar que qualquer pessoa pode chegar a tocar esse instrumento musical. Cercado de adultos e amigos de infância, deu conselhos aos jovens, dicas de respiração e colocação do som. Falou da sua peregrinação, desde que, jovem ainda, saiu de Piracicaba, em busca da conquista de um sonho. Solou algumas músicas, inclusive uma composição do pai, uma valsa dedicada à sua mãe e só parou porque já passava da hora fechar a casa.

No momento, já deve estar de volta ao estado do Rio de Janeiro, onde mora com a família, em uma invejável e grande chácara e ensina música para futuros talentos. Afirma, com entusiasmo, que é isto que ele gosta de fazer, quando não está viajando: ensinar!

Aqui, com os meus botões, declaro que eu estou pensando em voltar a comprar uma flautinha de lata. E, também, desejo afirmar que o Celso Woltzenlogel é mais um dos tipos inesquecíveis que passaram e estão passando pela minha vida. Foi uma alegria revê-lo.

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