Tipos Inesquecíveis: Doutor Cera (5)

Eu nasci morto.

Quando contei isso a amigos, há algum tempo, eles riram de mim, mas é pura verdade. Meus pais moravam na Rua Morais Barros, próximo à Avenida Independência, ao lado da casa da família Naval, do falecido jogador Gatão, tendo na frente o belo Bosque, hoje ocupado pelo Estádio Municipal e confrontando no fundo com a família do Elias Salum, que embora então criança, à minha mãe se refere com muito carinho. Seria um final de tarde, não sei bem, porque a certidão de nascimento não acusa o horário, o que impede que alguém venha a fazer o meu mapa astral legal. Iniciava-se o trabalho de parto da minha saudosa mãe Alba e a parteira, ao ver o resultado, deixou o pirralhinho de lado, considerado caso perdido: não respirava.

De repente, mais que de repente, como diria o poetinha Vinícius, eis que surge a figura radiante do meu inesquecível Tio Tota, ex-farmacêutico e já então médico, que me pega pelos pezinhos e, delicadamente, me dá uma série de petelecos. Milagrosamente, eu retribuo com um sonoro grito.

Não mais havia um bebê morto, mas, nos braços da minha mãe estava um pequenino ser, dado a magníficas conquistas, em seu futuro radiante, ou seja, ser bancário metido a jornalista e terminar escrevendo neste jornaleco on-line. O Tio Tota fora o autor de um milagre e eu, que deveria ter o mesmo nome do meu pai – Roberto Cera – ao qual se acrescentaria um Filho ou Júnior, fui brindado com a inclusão do Antonio, em homenagem ao tio, o Doutor Antonio Cera Sobrinho.

Estão feitas as devidas apresentações e não é preciso dizer que o meu Tio Tota sempre foi o meu herói, salvador e alvo da mais profunda gratidão.

Minha irmã Neusa era muito amiga das primas e frequentava a casa da Tia Binga, esposa do Tio Tota e, algumas vezes, eu, menino, a acompanhava ao casarão, há poucos meses demolido, onde os tios moravam, na esquina das Ruas Rangel Pestana com a Benjamin Constant. Lá, eu ficava encantado com um piano, que nunca ouvi ninguém da família tocar outra coisa se não O Bife. Certo dia, estávamos todos à mesa, almoçando, e eu quis dizer algumas gracinhas. O Tio Tota, simplesmente bateu a mão na mesa e declarou: ”Na hora de comer, come-se!”. Eu coloquei o rabinho entre as pernas, e engoli seco. Isso, em absoluto não me deixou traumatizado nem magoado, o que acontece hoje em dia, quando os adultos não podem mais ralhar com os seus anjinhos protegidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente e até pela Associação Protetora dos Animais. Muito pelo contrário, continuei a gostar e admirar o meu tio, da mesma forma.

Já crescido, comecei a participar da imprensa piracicabana. Titio, ao ler os meus escritos, sempre me entusiasmava e, certo dia, disse que tinha orgulho de mim, o que me deixou muito emocionado.

Havia críticas maldosas contra o Doutor Cera, coisas como ele ter se separado da mulher, ter amante, coisa mais do que normal, hoje em dia, ou insinuações por ele ser médico de prostitutas, protegê-las e tratá-las como seres humanos. Mas, também não faltavam as referências ao seu despreendimento, quando perguntava aos pacientes se podiam ou não pagar a consulta. E, pagando ou não, ninguém saia sem a sua receita, ou com amostras grátis no bolso. Dizem que, certa ocasião, ele ficou furioso porque um cliente, além de receber as caixinhas de remédio, pediu que as embrulhasse.

Era, também, o refúgio da juventude de então, em busca da cura dos seus males, frutos de aventuras amorosas. Ainda não havia a penicilina., mas o Doutor Cera sabia o que fazer!

Não fez da medicina um comércio. Seus bens foram todos herdados de seus pais. Simplesmente, administrou o que recebeu, coisa que alguns de seus irmãos, não souberam fazer.

O Cecílio teve o seu primeiro jornal – Folha de Piracicaba – instalado na frente do consultório do Doutor Cera e já me contou inúmeros casos de demonstração de bondade, que pode presenciar. Meu irmão Alcides, era sócio do primo Toninho, em uma oficina de auto elétrico e presenciou coisas como o tio dando uma camisa a um cliente pobre, tirada do seu próprio corpo.

Na época em que ser vereador não era uma profissão, e os cidadãos trabalhavam por amor à cidade, titio também foi um edil. Alguns anos depois, após tentar a prefeitura e abandonar a política, um vereador me pediu que fosse levar a ele a informação de que seria indicado para receber o título de “Cidadão Piracicabano”, acontecimento raro, que geralmente era a poucos distinguido, por ocasião do dia do aniversário da cidade. Titio ficou furioso e quase me expulsou do seu consultório, afirmando que ele já era piracicabano, sempre foi piracicabano e que ninguém ousasse divulgar, publicamente, que nascera em Limeira. Hoje em dia, a maioria dos vereadores se especializa em levantar sua bandeira no sentido de oferecer títulos e mais títulos de cidadania e congratulações, em maior número possível, independente do real mérito do homenageado, certamente já pensando na reeleição, em sair bem na foto a ser publicada, na imprensa, e no aumento do eleitorado.

Há alguns meses, um velho companheiro do Doutor Cera me contou que, certa ocasião, havia marcado uma ida, de manhã, no aeroporto (titio era aviador!) e passou pela sua casa. Apesar de pouco enxergar, ele tinha a ousadia de ser motorista e pilotar. Ao chegar a condução, ele contou que, de madrugada, já havia feito um parto, na periferia da cidade. Pediu ao amigo que esperasse até que fosse ao mercado, comprar um frango, a fim de que, durante o percurso, pudesse passar pela casa da parturiente, antes de voarem, a fim de que ela pudesse fazer uma canja.

Em meados do ano 2000, estive onde morava – um apartamento sobre a garagem, ao lado do consultório, e ele se desculpou de não ter podido ir ao velório da minha mãe, sua cunhada. Disse estar muito abatido e eu o achei estranho. Poucos meses depois, no final do mesmo ano, faleceu.

O tempo passa e existe ainda quem se lembre dele. Mas para essas pessoas, para mim e familiares o Dr. Antonio Cera Sobrinho, o Tio Tota, será sempre lembrado como um médico como poucos. O nosso tipo inesquecível.

Foto da família:
Sentado: Helena Cera Holland, Cecília Cera Ometto, João Cera, Georgina Vanucci Cera, Antonia Cera Sansígolo.
Em pé: Roberto Cera, Olívio Cera, Américo Cera, João Cera Filho (farmacêutico), Antonio Cera Sobrinho (Tota), José Cera (Juca)

 

Caricatura de Renato Wagner, na Revista Mirante

3 comentários

  1. Adelia Maria Sachs Hallai em 10/03/2015 às 07:26

    Quero dizer ao senhor que conheci Dr.Cera, pois Ele foi sogro de minha tia Iracema Sachs Cera casada com o tio Toninho(Antonio Cera Filho)e que conheci D.Binga, Lais, Teresinha e até o tio Dadão, passei minha infância até os 10 anos em Piracicaba, terra maravilhosa que nasci, e hoje resido em S.Paulo, li e assisti as homenagens justas que fizeram ao querido Dr.Cera, em Piracicaba tenho alguns primos e tio Toninho que lá residem, sinto saudades daqueles tempos, abraços a todos.

    • Roberto Antonio Cera em 13/08/2017 às 15:10

      Parece incrível, mas eu nunca descia aos comentários e só hoje vi sua carra. Conheci também o Dadão, que era aviador e fazia a manutenção, ele mesmo, do avião antes de voar.

  2. Eduardo Silveira da Mota Neto em 23/12/2017 às 18:47

    À Adélia e Roberto; Sou Eduardo Silveira da Mota Neto – Filho de Eduardo Silveira da Mota Jr. – mais conhecido como Dadão – e sobrinho da tia Binga (Hortencia Silveira da Mota Cera) e do tio Cera (Dr. Antonio Cera Sobrinho). Tio Cera era uma figura rara e inesquecível, que apesar da aparência sisuda e seria, nos surpreendia com um coração de ouro. Reza a lenda que algumas das consultas dele foram pagas com galinhas…

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