Tipos Inesquecíveis: Michel Audi, o inusitado

Em 1962, eu já escrevia as minhas cartinhas dirigidas a jornais e revistas desta e de outras cidades. Nessa época, morava e trabalhava em São Paulo. Em 1968, já em Piracicaba, o José Maria Carvalho Ferreira, que fora meu colega no Dom Bosco, sabendo do meu gosto pela bossa nova, me procurou para escrever sobre o assunto, em um suplemento mensal que o doutor Losso Neto pediu que ele fizesse no Jornal de Piracicaba. O suplemento – Panorama – não chegou ao décimo numero, mas assim que saiu a primeira edição, o Zé Maria me ligou para contar que foi procurado pelo doutor Afrânio do Amaral Garboggini, especialista em musica erudita e crítico de arte do JP, que pediu para me conhecer. Foi o início de uma longa e preciosa amizade que somente terminou, infelizmente, com a morte do Afrânio. Numa dessas conversas, ele falou que gostaria de me apresentar um grande amigo seu. Foi assim que eu conheci o Michel Audi, que transformou a dupla em trio e que também ficou sendo outro dos meus melhores amigos. O Michel, não possuía muito estudo, mas era culto, lia muito, sabia de quase tudo e, quando não sabia de alguma coisa, não se envergonhava de perguntar. Eu costumava escrever sobre ele, em O Diário, na página Recados, que editava, e sempre o cognominava de inusitado, o que o deixava curioso em saber o motivo. Estava na cara! O Michel era o próprio sinônimo de inusitado.

Solteiro, como eu, passou a ser meu colega de peregrinações noturnas e éramos muito bem recebidos por onde passávamos, principalmente o Michel, pelo carinho com que tratava as então intituladas mulheres de vida airada, que, para ele, eram sábias e merecedoras de todo o respeito. Dedicava especial atenção às feias, e às indesejadas, por achar que eram desprezadas, como acontecia com uma pretinha esquálida, que fazia ponto em uma casa do Jardim Elite e, com a qual o Michel fazia questão de ir para o quarto, pois achava que ninguém a queria. Mas, depois, procurava outra mulher. O Michel era um cara arretado! Chegava a pegar o Expresso Piracicabano, de madrugada, ir a São Paulo, em busca de prazer, e voltar.

Certa época, a imprensa noticiou que passaria por Viracopos um avião de passageiros, da Lufthansa, tido como o maior de todos. O Mustang, de quem já escrevi neste jornal, ficou muito entusiasmado e insistiu em ver a aeronave, dizendo ser da sua companhia aérea predileta. Durante a viagem de 80 quilômetros até Viracopos, o Michel Audi fez uma verdadeira dissertação sobre o vôo dos pássaros. Até hoje não sei como é que ele arrumou tanto assunto, durante quase uma hora de viagem.

Algo que também que fascinava o Michel era o espiritismo. Ele dizia não ser fanático, mas era interessadíssimo pelo assunto, frequentador do Centro Espírita e eu virei uma espécie de seu consultor, quando me falava de ruidosas gravações sobrenaturais, ou trazia fotos, com casas sombrias, habitadas por velhos, mulheres e índios americanos, afirmando que eram espíritos e eu discordava, dizendo que as fotos não passavam de montagem…e das piores. Ele não se conformava. Como eu possuía um pequeno laboratório, em minha casa, cheguei até a levá-lo para mostrar como colocar uma figura estranha no meio de outras pessoas, com o uso de um simples ampliador fotográfico. Hoje, com o Photoshop, meu Vitti chega a me colocar até na Santa Ceia, ao lado do injustiçado Judas, se bem que eu preferisse estar ao lado da Maria Madalena.

Uma noite, entrei com ele na velha redação de O Diário e ficamos conversando com o Cecílio, enquanto batia à máquina um “Bom Dia, Leitor”. Pouco tempo depois, o Cecílio me estendeu a folha, pedindo que desse uma olhada e fizesse a revisão. O Michel ficou encantado. Não compreendia como é que o Cecílio podia conversar e escrever ao mesmo tempo. Saímos, com ele achando que tivesse acontecido algo de sobrenatural, dentro da sala.

O Michel era uma pessoa até certo ponto temperamental, mas boníssimo. Durante longo tempo, diariamente, ele passava pela casa do Luiz Trovão, que ficou cego, e o levava até a Praça José Bonifácio, para conversar com os amigos. Algumas horas depois, fazia o caminho inverso. Ficou furioso, um dia, quando o chamaram de “bengala de cego”, mas não se importou e continuou com a sua tarefa.

Com o passar dos anos, ficou meio surdo, comprou dois dos melhores e mais caros aparelhos, mas não conseguia usá-los. Quando soube que a minha mãe também estava ficando surda, fez questão de dar a ela os aparelhos. Em seus últimos dias, também começou a perder a visão. Como gostava muito de música, cinema, de apreciar a natureza e as belas paisagens, acho que foi perdendo o interesse pela vida e já não mais saía de casa, até quando morreu como um passarinho, segundo sua irmã. Em um de nossos últimos encontros, mostrava-se desiludido e me disse que tinha certeza de que lá, do outro lado, a vida que aqui já não lhe foi benevolente, seria ser muito pior. O Michel partiu para sempre, não mais o veremos, mas eu torço para que ele tenha se enganado e ido desta para a melhor. Para ele acabou o mistério, o suspense que o atormentava, mas espero que esteja batendo longos papos, na paz do Senhor, com seus amigos, Zé Maria, Bertico Thomazzi, Afrânio, pais, irmãos e até mesmo com o velho Frota, intransigente espírita, que passava dias e noites desenhando caricaturas de seus conterrâneos, nos bares e restaurantes da cidade, se já não estiverem reencarnados. Seria muito chato para o Michel não reencontrá-los.

É a vida de mais um que se vai e o Michel, nesta hora, já tomou conhecimento do certo e do errado das suas misteriosas e insistentes suposições. Mas, seja lá como for, aqui, neste nosso lado, permanecerá a lembrança de um amigo especial.

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