Tipos inesquecíveis: voltando ao João Chiarini

Como já escrevi, éramos muito amigos e nos admirávamos. Bem mais novo do que ele, eu chegava a ficar enrubescido quando, até em seus discursos, me incluía entre os homenageados, usando as suas mesóclises e as suas figuras de retórica, que chegavam a ser pleonásticas. Mas era tremendamente ferino com os de que não gostava. Às vezes, na Galeria Gianetti, onde possuía a livraria “O Pilão”, reunidos, todos procuravam sair por último, a fim de evitar as ironias chiarinescas.

Eu, mesmo, certa vez fui vítima da sua ira. Eu era o editor da página “Recados”, que o extinto “O Diário” publicava, aos domingos. Simplesmente, eu selecionava as matérias e as revisava, quando eram enviadas por colaboradores. As dos redatores da casa eu nem lia. Escolhia as ilustrações, era já fase do off-set, fazia o ”pestape” – a colagem das matérias em uma página de papel tamanho jornal – e achava que a minha missão já estava cumprida. Fiz isso durante uns 15 anos. Na segunda-feira, me encontro com o Chiarini, que vem furioso na minha direção esbravejando, quase chegando à agressão. E ele, gritando, ameaçava de me destruir, desmoralizar diante da opinião pública, dizendo: “Não sei nada de errado contra você, mas invento!”. Aconteceu o seguinte: uma colega da redação, a Ana Lúcia, queria fazer matéria sobre ele e foi até a sua casa, então na Rua Voluntários de Piracicaba. Quem a recebeu foi a dona Tita que não a atendeu muito bem, não sei o motivo. E a Ana Lúcia, sem que eu soubesse, escreveu um recado contando isso, na página. O Chiarini adorava dona Tita, sua esposa. Foi preciso que o Cecílio conversasse com ele, também explicasse o que houve, para que voltássemos às boas, como se nada tivesse acontecido.

Certo dia, o Chiarini me pediu que o levasse ao Cemitério da Saudade. Eu tinha pavor de cemitério, mas como ia dizer isso a ele? Fomos e, lá chegando, ele me mostrava túmulos e comentava detalhes do falecido. Ficamos curiosos com um deles, bem paralelo à Avenida Independência, em cuja lápide estava escrito: “Fulana – Assassinada”. Teria sido crime passional? Prometeu pesquisar, mas ficou nisso. O engraçado foi quando ele chegou perto de um túmulo, subiu nele e começou a dar pulos. Diante do meu espanto, esclareceu que se tratava de um comerciante local, que somente oferecia batatas podres, quando das campanhas de mantimentos que, então, eram levados para os leprosos de Pirapitingui.

O falecido prefeito Cássio Paschoal Padovani nos nomeou para a comissão organizadora do Salão de Arte Contemporânea. Na época, o jornal “O Diário” costumava publicar, aos domingos, uma mesa redonda. Naquela semana, o assunto era sobre o Teatro Municipal, inacabado. Pediram a minha opinião e eu declarei que “os algozes que dirigiam a cidade pouco estavam interessados em cultura” e o Chiarini afirmou que “o prefeito da cidade era insípido, inodoro e incolor”. Já, na terça feira, o Cássio Padovani, em represália, fez publicar nos jornais nossa destituição da comissão. O Nardim e o Dirceu Lemaire de Morais pediram demissão, em solidariedade, mas Laudelina Cotrim de Castro e Geraldo Quartim Barbosa não aderiram, cuja presidência foi assumida pelo já então nosso grande amigo José Maria Carvalho Ferreira. Ficamos muito sentidos com o ZéMaria. Foi a primeira e única vez que ele nos decepcionou e, parece que por castigo, foi o pior salão que tivemos até hoje, com artistas premiados, sem quadros expostos. Mas, perdoamos o Zé Maria, que foi um dos mais importantes intelectuais da cidade, e continuamos seus amigos..

Quem foi amigo do Chiarini certamente recebeu uma de suas cartas ou convites. Todas elas, do envelope ao papel interno, eram escritas com canetas de diversas cores, destacando os assuntos. Como sua letra era clara e inconfundível, quando recebíamos uma carta nem precisávamos ir ao remetente. Mostrou-me várias delas, quando escrevia para Jorge Amado, seu amigo, também coloridas, que sempre começavam assim: “Amado Jorge”.

Certa noite, em sua casa, após dona Tita nos servir seus famosos doces, o Chiarini começou a falar “Jorge isso, Jorge aquilo”… ao que dona Tita perguntou: “Que Jorge, João, que Jorge?” e o Chiarini gritou: “Jorge Amado, Tita, Jorge Amado!”. Quando voltei à redação de “O Diário”, contei isso ao Evaldo Vicente, agora dono da “Tribuna de Piracicaba, então um rapazote. Até hoje, quando o Evaldo me encontra, ele grita: Que Jorge, João, que Jorge?”. E eu sempre respondo: “Jorge Amado, Tita. Jorge Amado!”.

Fotografei e filmei o Chiarini diversas vezes, mas lamentavelmente o material sempre lhe foi entregue e não encontrei, até agora, pelo menos uma sua foto para ilustrar este depoimento. Como já escrevi, seus discursos, alguns filmados, eram memoráveis, com uma preocupação imensa pela colocação pronominal. Se localizados, bem que poderíamos colocar alguns, no Youtube, a fim de que a geração atual que não o conheceu, possa ver a figura que era.

Como muitas pessoas da cidade, o Chiarini também gostava de ostentar sabedoria, a ponto de chegar ao exagero. Uma noite, na redação, o Cecílio me contou um acontecimento inusitado. Um repórter de um grande jornal paulistano visitou à saudosa “Folha de Piracicaba” e disse que gostaria de conhecer a cidade. O Cecílio convidou o Chiarini, que estava na redação e saíram os três, perambulando. O Chiarini falava com entusiasmo de Prestes e dos russos, comunista que era. O repórter internacional perguntou se ele sabia falar russo e o Chiarini afirmou que sim, que falava fluentemente, o que deixou o jornalista feliz, afirmando que também falava russo e, então, poderiam conversar um pouco, na língua. E soltou uma longa frase, daquelas enroladas, à qual o Chiarini prontamente respondeu. A conversa acabou por aí. Após deixarem o Chiarini em casa, curioso, o Cecílio perguntou ao jornalista se o Chiarini havia dito, em russo, algo que o desagradasse e ele disse que não. Simplesmente, ele havia feito uma pergunta ao Chiarini, que respondeu com uma séria de palavras, em russo, mas sem sentido algum.

Outra: um advogado parente do Chiarini, na frente da Livraria Brasil, lhe contou que estava lendo um opúsculo do célebre jurista Olten Ayres de Abreu., ao que o Chiarini imediatamente respondeu que já tinha lido e que gostou muito. O advogado, gozando, respondeu a ele que Olten Ayres de Abreu não passava de um simples juiz de futebol e não era nenhum jurista. Esses fatos em nada me desmerecem a pessoa incrível que foi o João Chiarini. Faziam parte da sua personalidade, porque não dizer folclórica e do seu temperamento inusitado. O Chiarini era isso! A expressão “caipiracicabano” é de sua autoria!

Jamais o vimos desmerecer o autor de um simples texto, de uma poesia, ou de uma pintura, quando lhe pediam a apreciação. Podia pecar, sim, pelo excesso de entusiasmo que proporcionava ao iniciante.

Naquela época, como ainda um pouco agora, os esquerdistas se julgam os donos da verdade e olham com desdém para todos aqueles que lhes parecem ser da direita. O Chiarini era comunista e o doutor Cera, meu tio, era integralista. Pois se davam e se queriam muito bem. Meu tio era desapegado ao dinheiro e o João Chiarini quis porque quis conseguir-lhe uma aposentadoria, junto ao então INPS, o que o ajudou, financeiramente.

Certa manhã, eu estava na Galeria Brasil, bem na frente de uma casa de comida síria e o Henrique Spavieri, de passagem, me perguntou se sabia quem tinha morrido. E acrescentou de supetão: o João Chiarini. Confesso que passei mal e precisaram me dar água para beber. O velho e inesquecível amigo havia partido para sempre.

Assim, entrei por uma porta, saí por outra. Quem souber mais do Chiarini que conte outra.

Ele merece permanecer vivo em nossas memórias.

João Chiarini!

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