História que eu não gostaria de contar (1)

O golpe militar de 1964 completa 50 anos. De minha parte, chego a 58 anos de jornalismo, vividos em Piracicaba. Fui, assim, testemunha, ator, autor, participante de todos os longos anos de trevas que caíram sobre o Brasil. E, portanto, também sobre Piracicaba. Poucas vezes, dei-me o direito de ser simples espectador. Por tal envolvimento, é-me impossível – pelo menos, sinto-o assim – escrever sobre aquele período sem fazê-lo como testemunho e depoimento pessoais. Peço, pois – a leitores – permissão para a narrativa reflexiva. Que seja, ela, tida apenas como uma versão pessoal, uma história que eu sei. E que vivi. Mas que eu não gostaria de contar.

GOLPEUma noite anunciadora

Naquela noite de 30 de março de 1964, apressei-me em fazer o fechamento da edição da “Folha de Piracicaba” – jornal do qual eu era diretor e me tornara proprietário – para cumprir um compromisso social. No dia 31, seria o aniversário do casal Diva e Luiz Guidotti, ambos nascidos na mesma data. Tornara-se quase oficial a celebração, repetida todos os anos, prestigiada por amigos daquele casal alegre, querido, sociável. Muito próximo de Luiz Guidotti – apesar de nossa diferença de idade – eu me sentia no prazeroso dever de ir cumprimentá-los. Eles haviam antecipado a comemoração natalícia, de 31 para 30.

Eu estava casado com Mariana fazia pouco mais de um ano. Inquietei-me por deixá-la só em nosso apartamento, pois os boatos e ameaças de violência chegavam ao ponto de combustão. Mariana não podia acompanhar-me, fui sozinho. E, ao chegar próximo da residência do casal – na esquina do Clube de Campo – percebi estranha movimentação. Havia veículos oficiais, policiais militares, alguns outros à paisana. A tensão estava no ar. Apenas depois de me identificarem, permitiram-me entrar na residência de Diva e Luiz.

Lá, eu soube do que se tratava. O Governador Adhemar de Barros – amigo pessoal de Luiz Guidotti – estava para chegar, participando da recepção. Todos aqueles cuidados, pois, eram para a segurança do velho Adhemar, por quem eu tinha ojeriza política. À época, Adhemar era como que o símbolo da corrupção no país, com seu famoso e melancólico “rouba, mas faz.” Tinha, porém, uma liderança fortíssima, acentuada ainda mais pela confusa, complexa e alarmante situação política do país naqueles anos.

O Governador estava atrasado e Diva e Luiz Guidotti desculpavam-se, por ele e por si mesmos. Então, por volta das 23h., Luiz foi chamado ao telefone. Era Adhemar de Barros, o governador. Que se explicava, desculpando-se por suspender a visita e comunicando: “A situação está gravíssima. Teremos novidades nas próximas horas.” O Brasil começava a entrar em convulsão mas ninguém, ainda e então, sabia o que o ocorria e o que aconteceria. Um golpe de Estado? Mas vindo de onde: do governo de João Goulart, das forças reacionárias que o combatiam?

Voltei a meu apartamento, que ficava no andar superior da redação da “Folha”, na rua José Pinto de Almeida, esquina da Moraes Barros. Minha mulher me esperava. E eu, na hormonal agitação dos meus 23 anos, buscava informações, através das fontes precárias de então, praticamente reduzidas às emissoras de rádio. E, no entanto, entre elas mesmas, havia-se intensificado a “guerra de informações”, como a confirmar que, “na guerra, a primeira vítima é a verdade”. A Rádio Tupi – do todo poderoso Assis Chateaubriand e seu império de comunicação – criava alarmismos, anunciando que o Presidente João Goulart fugira do país, que renunciara. Por outro lado, dos Pampas gaúchos, Leonel Brizola esbravejava, criando uma rede de reação e de enfrentamentos.

Adhemar de Barros convidara Luiz Guidotti para, na manhã do dia 31, estar em São Paulo, pois precisava de companheiros que o ajudassem a tomar atitudes. Ele fazia o jogo político: ora com Jango, ora contra, oportunisticamente estudando as possibilidades. Luiz Guidotti foi ao Palácio do Governo e, de lá, acompanhou Adhemar de Barros ao comando do II Exército, onde se reuniram com o General Amaury Kruel, um militar influente mas hesitante. Finalmente, o governador e o comandante decidiram participar do golpe militar. Luiz Guidotti foi o primeiro piracicabano a saber do trágico fim da democracia brasileira.

Naquela noite de 31 de março de 1964, Piracicaba dormia sossegada. E – se soubesse que Jango fora deposto – mais sossegada e feliz ainda ficaria. Pois Piracicaba – e é essa a grande realidade que tem sido sonegada – apoiava e queria o golpe, não avaliando conseqüências, bastando-lhe, apenas, que Jango “fosse derrubado”.

Quase ao amanhecer, fui dormir, sem saber, realmente, o que acontecia. Era 1º de abril. E, em mim, pesava outra preocupação: naquela tarde, aconteceria a primeira prova dos exames vestibulares à Faculdade de Ciências Econômicas, Contábeis e Administração de Empresas, recém criada pelo Colégio Piracicabano, a semente da futura Universidade Metodista (UNIMEP). Quando acordei, a confirmação: o golpe militar já se iniciara, vindo das tropas de Minas Gerais, comandadas por um alucinado general, conhecido por seus rompantes, de nome Mourão Filho.

No exame vestibular – a prova era de Português – o Professor Benedito de Andrade – entre silencioso e matreiro – apresentou o tema para a dissertação: “Golpe militar e democracia”. E olhou-me nos olhos, um dos jornalistas participantes daquela seleção…

Uma toca de raposas

Para se ter uma ainda que superficial compreensão de como Piracicaba recebeu o golpe militar de 1964, seria preciso ter na lembrança que, antes de mais nada, a nossa história política foi marcada pelas mais diversas formas de “coronelismo”. Desde a povoação, ainda no século 18, quando a luta pelo poder se deu entre Antônio Corrêa Barbosa, o Povoador, e o grileiro, sargento Carlos Bartolomeu de Arruda. E em seguida, entre monarquistas – os poderosos barões de Rezende e de Serra Negra, em especial – e republicanos, entre os quais a família Moraes Barros, Luiz de Queiroz e outros.

A influência dos Moraes Barros – chamemo-la, com respeito, de “coronelismo esclarecido” – encerrou-se com a revolução paulista de 1932, dando início a uma nova fase de transformações que, no entanto, se marcou, também, por essa luta pelo poder. Em 1932, entre os líderes que deflagraram a revolução paulista, estavam dois piracicabanos: Paulo de Moraes Barros, sobrinho de Prudente de Moraes, e Francisco Morato, casado com filha do Barão de Serra Negra. Com a derrota dos paulistas, Getúlio Vargas determinou uma verdadeira assepsia política em Piracicaba, impondo uma rigorosa “lei do silêncio” sobre eles e todo o passado. Chegara a vez, também entre nós, do “getulismo”. E, com ele, o “adhemarismo”. Duas novas formas, igualmente, de “coronelismo político”.

Piracicaba, desde 1932, se tornou enraigadamente avessa ao “getulismo”. E, no entanto, deixou-se seduzir por Adhemar de Barros – nomeado governador de São Paulo – que aqui nascera e onde mantivera laços. O “ademarismo” se tornou uma febre entre os piracicabanos, em mais uma de nossas históricas contradições: contra Getúlio, mas a favor de Adhemar, como se eles não fossem grãos do mesmo saco. Dessa dualidade, surgiram duas novas vertentes na liderança política de Piracicaba: Samuel de Castro Neves – o médico dos pobres, humanitário – e Luiz Dias Gonzaga, fazendeiro poderoso com vícios e cacoetes da Velha República. Nasceram o “samuelismo” e o “gonzaguismo”, tendo, como coadjuvantes, as famílias Pacheco e Chaves e os integralistas – partidários de Plínio Salgado – a rondar o poder.

O primeiro grande exemplo dessa “toca de raposas” – sem ideologia definida a não ser a do interesse pelo poder – foi quando da redemocratização do Brasil após a queda de Getúlio Vargas. Havia novos partidos e os líderes tinham um único critério para se filiarem a eles: o adversário. Se Samuel Neves estivesse num partido, Luiz Gonzaga iria para outro. E, assim, “getulistas” ingressaram na nova UDN, nascida exatamente para combater o que restava do “getulismo” em todo o Brasil. Em Piracicaba, a UDN – como viria a acontecer com a ARENA – tornava-se oposição. Mais do que paradoxal, a política piracicabana mostrava um surrealismo singular.

O que, todavia, não se pode negar a Piracicaba é sua vocação pioneira, ainda que à sua maneira e com características aparentemente morosas. No silêncio e com esperteza, as lideranças piracicabanas sempre souberam adaptar-se e, até mesmo, antecipar-se aos novos modelos. Foi assim que – para romper com o “samuelismo” e o “gonzaguismo” – surgiu a figura atraente de Luciano Guidotti, com um carisma diferenciado. Luciano foi convocado a entrar na política por personalidades proeminentes da cidade, incluindo homens da imprensa, de clubes de serviço, de instituições locais. Ele era um empresário que, da pobreza extrema, se tornara uma das grandes fortunas da cidade. Quase analfabeto, demonstrava uma liderança especial e um instinto por assim dizer animal de progresso. Mas insistia em dizer-se “apolítico” e “apartidário”. Essa sua roupagem aumentou-lhe o carisma e o charme.

No Brasil, havia duas novas e diferenciadas lideranças: em São Paulo, Jânio Quadros; na presidência da República, Juscelino Kubitschek. Em Piracicaba, em 1955, Luciano Guidotti se elegia prefeito, apoiado por grande número de partidos políticos. Sua missão aguardada com expectativa: vencer o velho “coronelismo”. E, sem conseguir destruir por inteiro o “samuelismo” e o “gonzaguismo”, instituiu o “guidotismo”. E, em vez do apaziguamento político, passou a haver um acirramento ainda maior, com rancores e ódios acesos. Nossos políticos agiam como se Piracicaba fosse maior do que o Brasil. O poder local era obsessão, com a toca das raposas tornando-se palco de confrontos e conflitos permanentes.

Nesse palco, nascia uma raposinha aparentemente ingênua, mas que iria crescer rapidamente e tornar-se outro estopim no cenário. Era o então vereador Francisco Salgot Castillon, mais um fenômeno fabricado pela indústria de surrealismos políticos piracicabanos: populista, ligado ao operariado, Salgot Castillon pertencia à ultraconservadora UDN. Em todo o Brasil, a UDN era o partido da elite conservadora.

(CONTINUA)

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