História que eu não gostaria de contar (4)

GOLPEA ridícula caça às bruxas

Mentirá quem disser ter havido excesso de violências do governo federal em Piracicaba, no ano de 1964 e nos subsequentes. Houve casos isolados e a violência acontecera em nível nacional, no surgimento da ditadura e na supressão de direitos. Em Piracicaba, violências cometidas foram de ordem política local, desencadeadas pelos políticos que se desentendiam entre si e aproveitavam a oportunidade de se mostrarem servis aos declarados “chefes revolucionários” que, na verdade, eram apenas golpistas.

Quando o primeiro inquérito policial-militar tentou enquadrar-me na “Lei de Segurança Nacional”, a imprensa de Piracicaba, os meus confrades do Jornal e do Diário de Piracicaba calaram-se. No entanto, para minha surpresa, recebi inesperadas cartas de apoio, de pessoas que até mesmo estavam ligadas ao governo militar. Uma delas, a do Coronel Pedro Corlatti – que havia sido meu professor de ginástica no Colégio Dom Bosco – e representante do Exército, pelo Tiro de Guerra. Outra, a do poderoso industrial Leopoldo Dedini, que elogiava meu comportamento como jornalista, especialmente quanto à minha discordância em relação a greves políticas. E, finalmente, a carta de um homem a quem – com meus resquícios marxistas – eu enfrentava: D. Aníger Melilo, Bispo de Piracicaba. Na carta, endereçada “às autoridades militares”, ele me designava como “um bom cristão”. E eu não o era.

O mais ridículo e, também trágico – episódio de “caça às bruxas” se deu a partir do Diário de Piracicaba, então dirigido por Sebastião Ferraz. Em nome da verdade, deve-se dizer que Ferraz – um especialista em artes gráficas – evitava polêmicas jornalísticas. Enquanto Losso Neto, no Jornal, cercava-se de companheiros do Rotary e da Esalq, Ferraz apoiava-se no Lions Clube e na Maçonaria. Mais do que conservador, era um espectador. Mas um de seus repórteres – e genro, Maurício Cardoso, também político ligado a João Guidotti e Laudo Natel – entusiasmou-se com o golpe, passou a apoiá-lo e a ver fantasmas. Foi o lamentável episódio do “túnel subversivo”, que aquele jornal estampou com estardalhaço.

Ocorria que, no Bairro Nhô Quim – então um dos mais precários da cidade – as carências eram enormes. O local era quase um pântano, sem rede de esgotos, barrocas. Os prefeitos anteriores à segunda gestão de Luciano Guidotti tentaram urbanizá-lo, mas foi Salgot Castillon que iniciou as principais obras. E, no entanto, não as concluiu. O vice-presidente do Sindicato dos Metalúrgicos, Octávio Arthur, protestava pelos melhoramentos, já que a sua residência era uma das mais atingidas por inundações e alagamentos. Numa assembléia dos metalúrgicos – que decidiu pela greve na Metalúrgica Dedini – Salgot estava presente e, diante das queixas, fez um “croquis” das tubulações e das bocas de lobo no bairro, explicando que com uma simples tubulação seria resolvido, pelo menos, o problema da casa de Octávio Arthur.

O material foi entregue ao sindicalista Nilton da Silva (Niltinho), que se elegera vereador. A cidade estava em pânico com a movimentação grevista e convicta de estar em marcha a subversão operária. O Delegado Adir da Costa Romano – íntimo da família Guidotti e de políticos poderosos – prendeu Nilton da Silva quando ele saía da Câmara Municipal, apossando-se do “croquis” feito por Salgot para as tubulações no bairro. Foram presos, também, os sindicalistas Octávio Arthur e Luiz Silveira Nunes, vice-presidente e tesoureiro do mesmo sindicato. O Delegado Adir da Romano deu exclusividade da informação a Maurício Cardoso e ele a divulgou conforme lhe fora explicado: “Metalúrgicos fazem túnel para boicotar a Metalúrgica Dedini”. E era apenas o “croquis” de um esgoto… A farsa se transformou em tragédia, pois Leonilda, mulher de Newton da Silva, estava grávida e, diante de tal tensão, perdeu o filho.

Outros que foram injustamente presos, com notícias espetaculosas nos já citados dois jornais, homens que apenas defendiam o interesses de classe ou dos bairros em que viviam: Arlindo de Oliveira Carvalho, Eugênio Belotti, Pedro Massaruto e também o sindicalista e vereador Celso de Camargo Sampaio. Os “subversivos” – vítimas das lutas apenas paroquiais – eram tão somente homens preocupados com problemas municipais e específicos.

Na Câmara Municipal, os debates intensificaram como se aquela casa legislativa se tivesse tornado um caldeirão em vias de explodir. O grande tema, no entanto, não eram o golpe militar, a perda da liberdade, a ditadura imposta, mas as denúncias de uns contra outros, uma excepcional oportunidade para vinganças pessoais ou grupais. O principal alvo era Salgot Castillon, o ambíguo udenista-populista. Um jovem advogado, Francisco Antônio Coelho – que se elegera vereador – passara, também, a fustigá-lo, apoiado pelo “guidotismo” em peso. Luciano queria a punição a Salgot, mesmo sendo, este, alinhado com líderes golpistas como Carlos Lacerda e Abreu Sodré. E outra figura que se destacava, furiosa e apaixonadamente: Romeu Ítalo Rípoli, com ideias assumidamente fascistas, defensor do golpe e da ditadura. Adversário feroz do “guidotismo”, Rípoli passou a fazer denúncias e campanhas pedindo a punição, pelos militares, de elementos ligados a seus adversários e companheiros de Luciano Guidotti. E, em especial, denunciou o vereador Francisco Antônio Coelho por, na Câmara Municipal, ter contratado “funcionários fantasmas”. Rípoli contava – por ser golpista de primeira hora – com que os militares o prestigiariam e que os “subversivos e corruptos” seriam punidos. Mas o feitiço, como se verá adiante, virou contra o feiticeiro.

Na imprensa, a “Folha de Piracicaba” – com grandes dificuldades materiais e com aqueles jovens inexperientes mas sonhadores – passou a ser monitorada e pressionada por um verdadeiro colegiado de desafetos instalados na Prefeitura, na Câmara Municipal, no Ministério Público, no Judiciário, na Polícia. O Delegado Adir da Costa Romano era implacável. E, para substituir o Coronel Pedro Corlatti, chegara um novo “guarda da esquina”, o Tenente Coronel Alfredo Mansur que, rapidamente, se integrou à ala “guidotista”.

Tornaram-se constantes minhas idas ao DOPS e ao G-Can, de Campinas. E pude ver, numa dessas idas ao G-Can, a aliança que o Exército fizera com Luciano Guidotti, prefeito de Piracicaba. Foi numa longa e dramática argüição, em que um dos militares – o Coronel Argus Lima, que seria um dos matadores de Carlos Lamarca – tentava embaraçar-me com perguntas capciosas e ameaças claras. Luciano enviara máquinas da Prefeitura para pavimentar toda a área do G-Can, em Campinas, o que, num regime democrático, seria crime de responsabildade. Mas, na sala do Coronel Cerqueira Lima – máximo chefe militar da região – estava, na parede por trás de sua imponente cadeira, a fotografia, em tamanho grande, do prefeito de Piracicaba Luciano Guidotti… Era a ditadura homenageando, oficialmente, um dos seus benfeitores.

Naquele 1964 – como a mostrar repulsa diante da tolice piracicabana de brigas paroquiais diante de uma tragédia nacional – pareceu que os deuses nos enviaram um castigo: a queda do Edifício Luiz de Queiroz (Comurba), no dia 6 de novembro. Até diante de tamanha tragédia, nossos políticos se revelaram medíocres e provincianos. O Governador Adhemar de Barros veio à cidade para solidarizar-se com a população e com familiares das vítimas, oferecendo os préstimos governamentais à Prefeitura. Diante dos escombros, a cena foi patética e dolorosa: o Governador ao lado do deputado Domingos Aldrovandi e de Luiz Guidotti e, a poucos passos deles – dando-lhes ostensivamente as costas – o Prefeito Luciano Guidotti nem sequer os cumprimentara… Nem mesmo a tragédia conteve os ódios e rancores.

Jornais irritados

Luciano Guidotti e seus companheiros não conseguiram que a “Folha de Piracicaba” se tornasse porta-voz deles, apesar de o termos apoiado decisivamente em seu retorno à Prefeitura. Para que ele não se deixasse acometer de algumas de suas muitas explosões temperamentais, sugeriram-lhe que, durante a campanha, passeasse pela Europa. Foi o que ocorreu. E a “Folha” tornou-se o suporte de enfrentamento a Bento Dias Gonzaga, filho de Luiz Dias Gonzaga, que, candidato à Prefeitura, pretendia reinstalar o “gonzaguismo”. Foi uma árdua luta, pois o Jornal de Piracicaba passou a apoiar o deputado Bentão, que teve, também, o suporte de Salgot Castillon. O Diário de Piracicaba manteve-se, como era do estilo de Sebastião Ferraz, na expectativa. Enfim, Luciano venceu. Mas com promessa de vingança contra os jornais.

Ele contava com a “Folha” mas, como já foi dito, fizemos-lhe oposição. Foi quando Luciano inventou de criar o “Diário Oficial do Município”, com o objetivo de não mais enviar – especialmente ao Jornal de Piracicaba – comunicados oficiais, decretos, publicações e, também, impressos, que eram quase que um privilégio da empresa dos Irmãos Losso. Foi a gota d´água. Ambos os jornais não conseguiram esconder a irritação, a perda de uma fonte importante de rendimentos. Em 1966 e, no ano seguinte – do bicentenário de fundação de Piracicaba – o “Diário Oficial” circulava todo poderoso, com financiamento público.

Predomínio do “guidotismo”

Naquele ano de 1965 – com a perda de esperança no retorno de Juscelino Kubitschek – a principal e mais honrosa alternativa que sobrava ao que restava da centro-esquerda era o prof.Carvalho Pinto, já eleito senador. Ele se tornara o “grande varão da República”. Os conservadores, porém, começaram a repudiá-lo por – no auge da crise do governo de João Goulart – Carvalho Pinto ter aceitado, até para acalmar o empresariado, ser Ministro da Fazenda. Foram-lhe, ao mesmo tempo, um ganho popular e um desgaste junto às elites. Como Ministro, ele pouco conseguiu fazer, pois se tornou evidente que a central sindical trabalhava para “o quanto pior melhor”

Através de Franco Montoro, João Chiarini, Líbero Rípoli (irmão de Romeu), Chopin Tavares de Lima conheci pessoalmente Carvalho Pinto e me aproximei ainda mais da Democracia Cristã. Convenci-me de que – mesmo não me considerando cristão – era o mais promissor espaço político. Aceitei filiar-me ao PDC, realmente empolgado com a seriedade e transparentes princípios daqueles homens. Assim, no dia 27 de outubro de 1965, fui levado ao escritório político do senador, na Avenida Ipiranga, em São Paulo, onde eu assinaria a minha inscrição partidária. Ao chegar, encontrei um ambiente agitado, nervoso, de expectativa angustiante. Havia um rádio-transmissor particular – não saberia dizer como funcionava – que fornecia informações diretamente àquele escritório. E, de repente, foi anunciado: o Marechal Castello Branco assinara o Ato Institucional n.2, o AI 2, que, entre outras violências, extinguia todos os partidos políticos instituindo o sistema bipartidário, nascedouro oficial de ARENA e MDB. O governo militar havia-se surpreendido – apesar de todo o autoritarismo revelado – por ter perdido eleições de governadores em diversos estados da federação. Decretava-se, assim, outro assassínio de sonhos. Lívido, o prof.Carvalho Pinto pediu, aos presentes, tempo para refletir, para tentar desvendar os novos caminhos. E – num gesto para mim muito especial – me falou que compareceria, em São Paulo, ao e seria patrono do lançamento de meu primeiro romance, “Um Eunuco para Ester”, em dezembro daquele ano. Fiquei perplexo. Em meio a toda aquela agitação, o notável homem público tivera tempo para exprimir o seu cavalheirismo.

Em Piracicaba, a bagunça política aumentou. Como aquele balaio de gatos haveria de se organizar em apenas dois partidos? O que seria oposição, o que seria situação? A favor e contra quem? Aos políticos, era mais importante a situação municipal ou a federal? As lideranças ligadas a Adhemar de Barros e Laudo Natel – governador e vice – iriam acompanhá-los. Logo, Domingos Aldrovandi, Luiz Guidotti, João Guidotti, Bento Dias Gonzaga, Pacheco e Chaves poderiam estar num mesmo partido? E Salgot Castillon, pupilo de Carlos Lacerda, onde haveria de se situar? E os carvalhistas, qual caminho seguiriam?

Em junho de 1966, Adhemar de Barros – um dos mais poderosos golpistas – teve o mandato cassado por corrupção e Laudo Natel assumia o governo paulista. Foi o mais precioso presente para os “guidotistas”. Pois o comando passaria a João Guidotti e, por consequência, a Luciano Guidotti, na Prefeitura. Aldrovandi e Luiz Guidotti ficavam em plano secundário e Salgot Castillon, na corda bamba. Acabavam-se os “ademaristas” e surgiam os “laudistas”. A política piracicabana virou de ponta-cabeça e, na “Folha”, vimo-nos também desnorteados, à espera da decisão de Carvalho Pinto, mas firmes na oposição à tirania militar. Mais do que antes, a “Folha” passou a ser perseguida e monitorada, agora também pelo novo Delegado, Joseph Cella.

O MDB parecia não ter qualquer futuro em Piracicaba. E o que poucos sabem é que foi um piracicabano – o deputado Athié Jorge Coury, da ARENA – quem ajudou a criar o MDB paulista, a pedido do próprio Castelo Branco. Athié era presidente do Santos F.C., no auge da popularidade pelo esplendor de Pelé. Em Piracicaba, João Pacheco e Chaves resolvera acompanhar o seu amigo pessoal e íntimo, Ulisses Guimarães, para ingressar no partido. E Francisco Antônio Coelho, também um “guidotista”, percebeu que teria mais oportuniades no MDB. Carvalho Pinto finalmente resolveu e se definiu pela ARENA e, pessoalmente, me explicou que era o melhor caminho para, dentro do governo, evitar uma ditadura ainda pior. Os antigos companheiros, Montoro e Chopin, não o acompanharam.

Carlos Lacerda – o maior líder civil do golpe militar – despertou do pesadelo que ajudara a criar e, tentando redimir-se, criou a “Frente Ampla”, com o apoio dos exilados Juscelino Kubitschek e João Goulart. Procurou apoio em Piracicaba, onde Leopoldo Dedini o acolheu, convidando-me também a participar daquele movimento anti-golpista. Entusiasmei-me, na certeza de que Carvalho Pinto também iria participar. (Tenho, até hoje, guardada, como lembrança histórica, a foto em que estamos nós três, Carlos Lacerda, Leopoldo Dedini e eu.) Mas a “Frente Ampla” morreu e, em 1968, a ditadura cassava os direitos políticos de seu maior porta-voz, Carlos Lacerda.

Já não mais havia, pois, expressivas lideranças civis em nível nacional. A ditadura ceifara o poder político. As lutas municipais acirraram-se, na confirmação do perigo dos “guardas da esquina”. Houve, então, em Piracicaba, uma aliança considerada impossível: Domingos Aldrovandi e Salgot Castillon – ambos deputados estaduais – uniram-se para enfrentar o “guidotismo” dentro da ARENA. Era outra guerra paroquial. Conseguiram a maioria do partido, mas João Guidotti continuava dando as cartas e, por trás dos panos, socorria-se de sua amizade com Laudo Natel. O absurdo continuava a acontecer: na Câmara Municipal, Francisco Antônio Coelho, do MDB, passou a denunciar Romeu Ítalo Rípoli e Salgot Castillon, ambos da ARENA. Eles eram considerados “adversários da revolução”. E Luciano Guidotti – ainda evitando definir-se por partidos – usava de suas relações pessoais com militares e o governo estadual para desencadear uma séria de vinganças pessoais. Foi assim que a Polícia Federal invadiu diversas casas de empresários – todos eles tidos por Luciano Guidotti como corruptos ou subversivos – e acabou enquadrando Romeu Italo Rípoli e o também poderoso Humberto D´Abronzo por sonegação de impostos. Luciano não perdoara D´Abronzo por este ter desistido de ser seu sucessor como candidato a prefeito, em favor de Salgot Castillon.

O Diário de Piracicaba e o Jornal de Piracicaba mantiveram as suas posições de apoio ou de silêncio diante da ditadura, mas de um divisionismo impossível de se entender: eram ora a favor de Salgot Castillon, ora de Luciano Guidotti, conforme cada situação e o andar da caravana. João Guidotti dava as cartas, influindo especialmente no boicote publicitário à imprensa, sendo, obviamente, a Folha de Piracicaba o seu alvo preferido.

Era como se o golpe militar não existisse em esfera nacional, sendo, apenas, uma guerra partidária em Piracicaba. Como entender que líderes sindicais – como Jaime Cunha Caldeira, Celso de Camargo Sampaio, Newton da Silva e outros – estivessem na ARENA, ainda liderados por Salgot Castillon, o populista que se fizera presidente do novo partido? Eu mesmo me inscrevi. E a situação se tornou tragicômica: a ARENA era oposição em Piracicaba e o MDB, a situação. Era o MDB – através de João Guidotti, homem da ARENA – a ponte com o governo de São Paulo, fazendo nomeações, transferindo pessoas, privilegiando outras. E, sem qualquer preocupação ideológica, os ódios acirravam-se e as vinganças prosperaram. A “Folha de Piracicaba” sentiu-o na carne. E, se era um jornal quase sem recursos e de instalações precárias, viveu o impacto do boicote comercial e econômico.

Em 1967, a “Folha de Piracicaba” não resistiu. A última máquina das oficinas quebrou e não tinha mais conserto. Nós, os jovens jornalistas e intelectuais, ficamos ao desabrigo. Recordo-me que, vendo-a ruir e estando só, sentei na sarjeta e chorei.

(CONTINUA)

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