História que eu não gostaria de contar (5)

O novo “O Diário”

Gustavo Jacques Dias Alvim já narrou a história de O Diário – anteriormente, Diário de Piracicaba – em seu livro “Um jornal de causas”. Há sempre, porém, mais a contar. O fechamento da Folha deixou um vazio completo em relação ao que se pudesse imaginar de oposição: aos governos municipal, estadual, federal, à ditadura, ao judiciário, ao legislativo, uma experiência jornalística inédita em Piracicaba. Éramos, desde o início, apenas jovens que – vivendo o final dos “anos dourados” –queríamos “transformar o mundo”. E toda uma nova geração se reunia naquele precário jornal: Antônio Messias Galdino, Luiz Antônio Rolim, João Maffeis Neto, Osvaldo Sobeck, Og Pessotti, William Zerbetto, Luizinho Pizza, Garcia Neto, Padre José Maria de Almeida, Roberto Antônio Cêra, Ermelindo Nardin, José Maria Ferreira e outros que, ao dedilhar do telhado, não me recordo. Além deles, tínhamos o apoio de intelectuais mais maduros, como Antônio Farah, prof. Joaquim do Canto, Clarice de Aguiar Jorge,João Chiarini, prof.Joaquim do Canto.

Minha postura ideológica mudara, numa transformação radical. Confesso, ainda agora, ter, eu, entrado num vazio profundo, sem enxergar horizontes existenciais. Foi quando – e seria uma outra história, esta, sim, que eu gostaria de contar – me converti ao Cristianismo. D.Aniger Melilo havia criado, em Piracicaba, os até então desconhecidos Cursilhos de Cristandade. O objetivo e a idealística pretensão dele eram “evangelizar os ambientes”. E iniciara visando os meios de comunicação e a classe política, além de lideranças operárias. Sem saber, realmente, do que se tratava, aceitei “fazer um curso de humanismo”, como me disseram. Mas era algo completamente diferente, lições de amor e de fraternidade, homens que se davam sem nada receber. Converti-me na madrugada de 7 de julho de 1967. E encontrei um novo e apaixonante sentido vida, tanto pessoal como profissional.

Após minha conversão, o jornalismo se tornou, para mim, uma missão da qual não mais poderia me afastar, com uma visão ainda mais ampla e generosa da dignidade e dos direitos humanos. O golpe militar, portanto, não era tão somente uma violação e violentação à ordem democrática, mas um atentado à dignidade humana. E Piracicaba era o local onde eu deveria atuar com uma visão cristã de mundo e de vida. Com mais coragem ainda. E com mais convicção. Havia uma causa maior pela qual lutar. E renovei-me.

Fechada a Folha, fui convidado, por Sebastião Ferraz, para retornar ao Diário de Piracicaba, onde eu iniciara a minha carreira. Mas eu não poderia fazê-lo sem levar comigo os meus companheiros e, em especial, com um sonho editorial ainda mais amplo. Foi quando ele, Ferraz, me revelou as dificuldades que enfrentava com os acionistas do Diário, os maiores empresários de Piracicaba, Dedini, Ometto e Morganti. Alguns dos acionistas queriam derrubá-lo da direção. Na Rua do Porto, numa tarde de bebedeira na velha “Arapuca”, veio-me a ideia, sei lá se por inspiração ou pela embriaguez, e a propus a Ferraz: “E por que não compramos o jornal dos Dedini, dos Ometto, dos Morganti?” Ora, não poderia ser divagação senão de bêbado ou de maluco. Comprar com que dinheiro? O fato é que, imediatamente, aquilo se transformou num sonho. E fui atrás dele.

Mário Dedini era muito próximo de minha família e tinha, por mim, um carinho especial. Sua mulher, Ignês Seghesi, era irmã de Nida, casada com meu tio Antoninho Elias. E era sabido que ele queria proteger Ferraz, apesar das objeções de Leopoldo Dedini, também acionista do jornal. Mas eu tinha, também, bons vínculos e fácil trânsito com Leopoldo. No ardor de meus jovens anos, fui até eles e propus a compra do “Diário de Piracicaba”. Eles se riram de minha ousadia e perguntaram-me como eu iria pagar: “Com trabalho, se os senhores me derem crédito.” Mal sabia eu que era uma solução para os problemas de consciência de Mário Dedini. Pois ele me disse que o negócio estaria fechado se eu conservasse Sebastião Ferraz na sociedade. Não acreditei, mas socorri-me de Domingos Aldrovandi e de Lázaro Pinto Sampaio, que me deram o aval para a aquisição.

E, então, nasceu O Diário, no lugar do Diário de Piracicaba. Éramos quatro os proprietários, em cotas iguais: Domingos Aldrovandi, Lázaro Pinto Sampaio, Sebastião Ferraz e eu. O plano parecia perfeito: Ferraz administraria o jornal; eu cuidaria da redação; Lázaro Sampaio, das finanças; Domingos Aldrovandi, deputado, seria relações públicas da empresa. Levei meus companheiros da Folha para O Diário e conseguimos fazer um outro jornal, totalmente modificado em sua aparência gráfica, com textos diferenciados, campanhas sociais e uma vigorosa posição diante dos dias amargos que vivíamos.

Muitos não acreditaram na minha conversão. Mas meu apoio espiritual e moral vinha de D.Aníger Melilo, que se me tornou verdadeiro pai da alma. Quando o mundo parecia desabar sobre mim pela atuação jornalística ousada, muitas vezes colérica, ele me dizia: “Ai do cão de guarda que não ladra.” Mas enfatizava: “Uma gota de mel colhe mais moscas do que um barril de vinagre.” Como, porém, usar gotas de mel em plena ditadura, com tantas perseguições e violências?

Toda a luta recomeçou. E – 50 anos depois do golpe – não seria honesto eu deixar de render homenagem a Domingos Aldrovandi, a Lázaro Pinto Sampaio, a Sebastião Ferraz que – mesmo discordando de minha linha editorial – jamais me contestaram, jamais a discutiram. O Jornal de Piracicaba – diante daquela explosão de modernidade de O Diário – tornou-se ainda mais conservador. Foi como se, de repente, as redações dos dois jornais entrassem em oposição: a juventude, a busca da modernidade, a oposição, a irreverência, n´O Diário; o conservadorismo, ainda mais catalisado no Jornal de Piracicaba. Hoje, a imagem me parece clara: n´O Diário, havia espaço para a esperança; no Jornal, o apego a um mundo que se findara, apesar de os princípios serem dignos.

Mas a roda da História gira e ninguém a controla. No dia 7 de julho de 1968 – exatamente um ano após minha conversão – Luciano Guidotti faleceu. De repente e inesperadamente. Almoçara no Lar dos Velhinhos, estava bem mas, ao retornar para a casa, foi vítima de um colapso cardíaco. Eu tinha acabado de retornar, no sábado, de trabalhos no Cursilho – ao qual passei a me dedicar com o mais belo de minha espiritualidade – e, exausto, fui para a redação, para a qual todos os redatores e funcionários foram chamados em condições de emergência. Iríamos fazer uma “edição extra”, mas ninguém tinha capacidade de analisar as conseqüências daquela tragédia. Ninguém pensava na ou se preocupava com a ditadura militar, agora nas mãos perturbadas do General Costa e Silva. Era Piracicaba o centro de tudo. Continuava sendo, para a imprensa, para os políticos, para a população.

O que seria de Piracicaba após a repentina morte de Luciano Guidotti, se era ele, na realidade, o grande novo coronel? Se o “guidotismo” imperava?

O MDB dos Guidotti

Naquele ano de 1968, haveria eleição municipal em Piracicaba. Luciano Guidotti tentara fazer, de Humberto D´Abronzo, seu candidato e não o conseguira. D´Abronzo desistira e passara a apoiar a candidatura de Salgot Castillon, o maior dos inimigos e adversários dos Guidotti. E vice-versa. O líder populista Salgot Castillon mantinha o apoio da maioria do diretório da ARENA local, outro saco de gatos do qual João Guidotti também fazia parte. E Salgot estava em plena campanha política em busca de seu retorno à Prefeitura.

A morte de Luciano causara um impacto emocional coletivo. E, num clima de luto e de perplexidade, os adversários de Salgot Castillon encontraram a alternativa para enfrentá-lo: o cadáver de Luciano, na figura de seu irmão João Guidotti. Era uma guerra de revanches e de ódios. Como seria, se ambos estavam no mesmo partido? (Foi antes de os militares criarem as sublegendas, para abrigar as diferenças entre candidatos.) Ora, elementar, meu caro Watson: João Guidotti deixou a ARENA e passou para o MDB. Com as bênçãos de Laudo Natel.

Foi-me, anda outra vez, um tempo agoniante. Salgot Castillon e eu fôramos adversários políticos ferozes. Ele, um udenista, ainda que populista; eu, um ex-marxista. Mas tinham acontecido os Cursilhos de Cristandade. E, num deles, fui eu o reitor – o coordenador – do Cursilho para o qual Salgot fora convidado. Ele – sobrinho do Monsenhor Martinho Salgot e com formação fortemente católica – retornou às suas origens espirituais. E o seu ardor populista transformara-se, para ele, em verdadeira doação para os mais humildes. Por outro lado, o próprio João Guidotti fizera o Cursilho. E – mais agoniadamente ainda – fui eu o reitor dele. Houve uma confraternização. Mas as ambições e os ranços políticos foram maiores. Nada os reconciliou. Com Salgot, porém, criei uma verdadeira fraternidade.

O Jornal de Piracicaba – do qual tanto Salgot como João Guidotti eram próximos – manteve a sua neutralidade. Precisei, então, determinar a linha editorial de O Diário: iríamos apoiar Salgot Castillon, um homem amado pelo povo. O “guidotismo” – agora personificado em João Guidotti – não tinha qualquer sensibilidade social, ainda que Luciano fosse um generoso assistencialista social. A candidatura dele se baseava no “cadáver de Luciano”, como se ele tivesse direito natural à sucessão do irmão.

O MDB de João Guidotti e de Francisco Antônio Coelho (Coelhinho) tornou-se “o grande inquisidor”, denunciando, exigindo cassações, forçando militares amigos a dificultar a vida dos adversários. O Tenente Alfredo Mansur soube fazê-lo com maestria. E o delegado de Polícia, Joseph Cella, submeteu-se docilmente. Em Piracicaba, acontecia o absurdo, como se fosse, esse, o destino de nossa terra: o MDB – nascido para fingir ser oposição – perseguia a ARENA, tida como partido oficial do governo federal. Mas quem, em Piracicaba, estava pensando além do umbigo?

Salgot Castillon venceu e estava pronto a retornar à Prefeitura, literalmente nos braços do povo mais humildade. Mas foi “vitória de Pirro” pois, tão logo se encerraram as apurações, começaram, também, as tentativas de impedir-lhe a posse. Com Coelho e João Guidotti no comando e ainda mais ressentidos, lá se foi o MDB bater às portas dos quartéis e – na tragicomédia caipiracicabana – denunciar a ARENA pelo binômio que se tornara chavão dos ditos “ revolucionários”: a vitória de Salgot Castillon – não nos esqueçamos: presidente da ARENA – era a vitória dos “corruptos e subversivos”.

Salgot estava com uma visão progressista de administração municipal, tomado de uma consciência sólida de que deveria governar especialmente para os mais necessitados. Propôs-se a criar secretarias municipais, desconhecidas em Piracicaba. E me convidou para, juntamente com o professor Guilherme Vitti, elaborar um projeto de educação para o município. Seu vice-prefeito eleito era Cássio Padovani, um antigo getulista apaixonado, que fôra líder do PTB de Jango. Lá estava a outra união paradoxal: Salgot, ex-UDN, e Padovani, ex-PTB janguista, no mesmo barco. E eu, um ex-comunista, tentando planejar, com o prof.Vitti, a educação municipal. E, concluído o trabalho, Salgot Castillon me fez a proposta inesperada: ser, eu, o Secretário da Educação de seu governo.

Mas os boatos fervilhavam: Salgot não tomaria posse, Salgot seria cassado. Certa tarde, em meu escritório de advocacia – pois eu, para sobreviver, também advogava e lecionava – Cássio Padovani foi ao meu encontro e – com a liberdade que uma velha amizade com minha família lhe dava – fechou a porta e explicou-me. O MDB de João Guidotti juntara provas, junto ao DOPS, denunciando que Salgot Castillon levaria um “comunista e subversivo para o seu governo”. Ou seja: eu próprio. E isso poderia ser motivo para ser-lhe impedida a posse. Era preciso, pois, contornar a situação. Combinamos a estratégia e levei-a à frente, fazendo uma declaração por escrito de aquele convite jamais ter existido. Era preciso, sim, mentir, dissimular, tentar enganar militares e acusadores.

Salgot Castillon tomou posse e, então, o Jornal de Piracicaba também lhe ofereceu apoio. O MDB, no entanto, não se conformava. Em Campinas, Orestes Quércia havia sido eleito prefeito pelo MDB. Perguntado se aquele seria um problema pra os militares, o truculento Coronel Argus Lima respondeu: “O problema não está no MDB, mas na ARENA de Piracicaba”. Com o AI-5 já em vigor, começava a via crucis de alguns e a bem-aventurança de outros.

(CONTINUA)

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