Memória – Centro Cultural Martha Watts (1)

A partir de hoje, registramos, em capítulos, um pouco da história da missionária metodista norte-americana Martha Watts e do Colégio Piracicabano – trajetórias que influenciaram a reforma de 1890 da rede pública de ensino de São Paulo.

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Martha Watts fundou o Colégio Piracicabano em setembro de 1881.

Desde sua criação, em datas históricas, o Colégio Piracicabano tem enterrado documentos para que, passados 50, 100 anos, novas gerações possam, ao retirá-los de seus jardins, recuperar um tempo anterior, com suas histórias, peculiaridades, sonhos. Nesta semana, ao pé do monumento que se ergue à frente de seus jardins, inaugurado quando o Colégio chegava aos 50 anos, foram encontradas folhas soltas, com uma caligrafia firme, como que deixadas por alguém que, ainda, tem muito a dizer à atual e às futuras gerações. A assinatura era simplesmente Martha.

 …”olho, ao longe, a azáfama que envolve minha antiga casa nos últimos dias e me surpreendo. Há pessoas de várias idades pintando, enfeitando-a, lavando antigas colchas e cobertores, polindo talheres, selecionando os quadros que nossas professoras pintavam em seus ateliers. Juntam minhas antigas cartas, os relatos que, durante tantos anos, enviei à minha terra natal e os organizam como se fossem preciosidades; há fotos desbotadas onde muitas vezes aparecemos, eu e outras professoras, sérias demais.

Ah! quanto de vida, de sentimentos, de emoção existe em tudo isto.

E como Piracicaba mudou, desde então! Lembro-me de minha chegada. Desembarcamos no Rio de Janeiro, vindos de Nova York, eu, uma professora já com 36 anos, que deixava em minha terra sonhos levados pela Guerra da Secessão com a morte de meu noivo, mas que trazia uma vontade imensa de servir. Dizem que eu era alegre, embora disciplinada; que misturava amabilidade com força de caráter numa figura esguia e de olhos claros. Uma combinação que as mulheres metodistas norte-americanas acreditaram ser adequada para que eu pudesse atuar como missionária neste Brasil distante e com costumes tão diferentes. Depois de 60 dias, eu e meus companheiros metodistas estávamos em Piracicaba, depois de passarmos por Lisboa, Ilha da Madeira, Salvador, São Paulo. Tratava-se de uma cidade, onde, desde o início, tive a certeza de que seria feliz. Mas era, realmente, um local com ruas mal calçadas, mal iluminadas, com lampiões de querosene que, descobri mais tarde, em noites de lua cheia, sequer eram acesos.

Como foram complicados os primeiros anos! Eu ainda não dominava totalmente o português, nossos trajes logo indicavam que éramos estrangeiras. Nossos costumes, também. Como estranhei a falta das lareiras nas casas dos brasileiros, o arranjo que eles chamavam de fogão, a falta de conforto na maioria das moradias, com um mobiliário escasso, inclusive sem o uso dos carpetes e raras cortinas. Homens e mulheres mais abastados se vestiam como nos Estados Unidos, mas os negros e escravos não possuíam trajes com um mínimo de dignidade. Nada era como eu havia fantasiado. As mulheres não andavam sozinhas pelas ruas, costume, entretanto, ao qual eu não me rendi, pois entendi ser uma forma de aprisioná-las em suas próprias casas.

Mas houve a simpatia e a acolhida daqueles que sempre seriam meus amigos especiais, a família Moraes Barros, com suas crianças amorosas que passariam pelos bancos do Colégio. Prudente e Manoel estiveram sempre muito próximos, apoiaram a criação da escola, partilharam nossas convicções até mesmo com o nosso inconformismo diante da escravidão que ainda existia em Piracicaba. Como pudemos comemorar juntos suas vitórias políticas, festejar, anos mais tarde, quando já eleitos, voltavam para nossa Piracicaba!

A casa que agora está restaurada, enfeitada e motivo de festa, só conseguimos inaugurá-la como prédio próprio do colégio em 1884. Antes, nossas aulas foram dadas, aos alunos que aumentavam, a pouco e pouco, em uma casa no Largo da Matriz. A impressão que tive, depois de seis meses em Piracicaba, era de que nos olhavam como estranhos e protestantes, e que poucos davam valor a um sistema de educação melhor do que aquele que era oferecido na cidade, inclusive a preços muito baixos. Acho que apenas os insetos preferiam nossa companhia. Outro dia, um sapo chegou em meio a nosso culto, como que querendo ver o que os protestantes faziam em suas reuniões e, como não tínhamos objeção quanto ao crescimento de seu nível de inteligência, ali o deixamos ficar. Encerrados os trabalhos, coloquei-o para fora. E, imaginem, ele esperou até a manhã seguinte para nos deixar!

O lançamento da pedra fundamental de nosso prédio próprio contou com a presença de um importante brasileiro, que acompanhava os Moraes Barros, o Sr. Rangel Pestana. Cantamos a Marselhesa e, naquela noite, doamos parte de nossas mensalidades para que as outras escolas da cidade, que eram de responsabilidade do governo, pudessem comprar um mobiliário mais adequado, já que as crianças eram muito mal atendidas.

Mas, que alegria!, quando realmente pudemos inaugurar este prédio, em 1884. Eu o achava muito belo, visto do lado de fora, com suas salas de aula, os dormitórios e a capela no andar superior. É verdade que a cozinha ficou pequena, ainda não tínhamos banheiros. Mas o poço nos fornecia água boa, coisa incomum na cidade. Foi no dia 29 de janeiro que abrimos a escola no novo prédio, com 46 estudantes, entre os quais um bom número de novatos. E, imaginem, em três semanas, eles já eram 66, a maioria com menos de quinze anos.

Não posso deixar de amá-las, não apenas para salvá-las para Cristo, mas apenas pelo que são. No entanto, como eu precisava de mais professoras! Os brasileiros gostavam mais das disciplinas que valorizavam o talento do que os estudos mais práticos e eu pouco estudara de francês ou de música, o que me levava a procurar ajuda entre os nativos. E havia tantos outros problemas: não dispúnhamos de livros e, nos primeiros anos, os alunos não sabiam inglês suficiente para utilizar os que havíamos trazido. O ensino de anatomia era feito com livros franceses. E os alunos eram pouco treinados para desenvolver o raciocínio, a maioria apenas queria aprender as coisas decor, repetindo-as como papagaios.

Mas, enfrentando os problemas, um de cada vez, foi que crescemos. No final dos exames, em 1884, o presidente da Câmara Municipal, Dr. Moraes Barros, levantou-se e, em nome dos pais, agradeceu nossa dedicação a seus filhos. Em 1887, nosso jardim da infância tinha 27 alunos, mas ainda enfrentávamos dificuldades com as famílias. Elas acreditavam que, às meninas, bastava saber ler, escrever e um pouco de aritmética, embora com bem pouca idade a elas coubesse o fardo de um marido e das responsabilidades da sociedade. Tenho sido a convidada de honra dos casamentos de algumas de nossas alunas e faço questão de estar nas cerimônias, porque sinto que eles me chamam para eu me tornar alguém de suas famílias. Em 1889, nossas estudantes foram a São Paulo prestar exames para a Escola Normal e para prosseguir os estudos em Direito, Medicina e Farmácia. Foram aprovadas com distinção.

Mas, então, já se aproximava o tempo de eu ir para outras cidades do Brasil, mais uma vez iniciando escolas. Meu destino seria Petrópolis, depois Belo Horizonte, onde outras crianças me esperavam.

Não pensem, entretanto, que esqueci Piracicaba, a cidade que me acolheu e onde pude ser feliz. Voltei para cá em 1907, quando a cidade já crescera, tinha outra aparência, o Colégio se expandia. Chamaram-me para o lançamento da pedra fundamental do novo prédio, o chamado anexo que, hoje, no século XXI, vocês chamam de Salão Nobre. Foi uma homenagem emocionante, quando soube que o prédio levaria o meu nome e quando recebi, de presente, um álbum em que os piracicabanos manifestavam sua admiração e agradecimento pelo trabalho que eu desenvolvera nesta cidade.

E agora, passados quase cem anos, estão todos reunidos, tanto piracicabanos como estrangeiros que fizeram desta cidade seu lar, numa nova festa em torno desta escola que se alegra com as vozes das crianças, com a algazarra dos maiores, com os ensinamentos dos novos mestres, com os valores imutáveis de nosso Deus.

Não posso deixar de me alegrar com vocês, de olhar com satisfação os frutos daqueles tempos onde o que sempre me fortaleceu foi a fé. Mas apenas aceito que chamem este local de Centro Cultural Martha Watts por uma razão, que não se vincula a méritos que queiram me atribuir: aqui foi a minha casa, o local onde fui feliz…”

 

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