Os “Anos Dourados” em Piracicaba (3). De repente, os salões se abriram e o requinte surgiu

Em 1959, estávamos quase no final dos “anos dourados” e pouca gente sabia disso, nem que estavam chegando ao fim, nem que tinham sido dourados. Lá se vão quase 50 anos, quem poderia imaginar que o tempo se passasse tão rápido, que tantas transformações acontecessem? O fato é, no entanto, que foram tempos pelo menos diferentes. Talvez mais leves. Juscelino Kubitschek trouxera, ao País, um novo ânimo, entusiasmos contagiantes. A construção de Brasília — e, em 1959, Brasília sequer fora inaugurada – vinha como um sinal de esperança, apesar das críticas severas que políticos e jornais oposicionistas faziam ao Presidente. O célebre André Malraux, um dos luminares da inteligência francesa, captara esse sentimento e chamou Brasília de “A Capital da Esperança”.

Lembro-me bem dessa Piracicaba, que foi a de minha juventude. Falar que era uma cidade serena, gostosa de se viver, seria explicar pouco. Para alguns, Piracicaba era até mesmo uma cidade monótona. Mas tínhamos seis cinemas: Broadway, São José, Politeama, Palácio, Colonial e Paulistinha. A juventude reunia-se às portas do Café Haiti, ao lado de onde estava a Livraria Brasil, no Edifício Georgetta Dias Brasil, na rua Moraes Barros, o primeiro edifício de apartamentos construído na Cidade. Políticos, conforme as cores partidárias e ideológicas, freqüentavam os bares Giocondo e Brasserie, na Praça José Bonifácio, ou o Senadinho, na rua Moraes Barros, quase ao lado do “Jornal de Piracicaba”. (Foto: Armando Dedini, Mauro Vianna(Marco Aurélio) e o jogador de basquete Paula Motta.) A imprensa piracicabana tinha saído da monotonia com a concorrência entre o “Diário de Piracicaba” – transformado pelo gênio de artista gráfico de Sebastião Ferraz – e o “Jornal de Piracicaba”, templo da UDN, onde Losso Neto escrevia, de quando em quando, editoriais de fina composição literária. E um grupo liderado por Renato Wagner – que depois passou a dedicar-se apenas à pintura – criou a revista “Mirante”.

Em 1959, os jovens ainda “quadravam jardim”. Havia círculos concêntricos, como se definissem classes sociais: moças “quadravam” no sentido anti-horário, rapazes no sentido horário. A elite piracicabana ficava na “calçadinha-de-ouro”, no espaço que ia dos cines Politeama (na Praça), ao Broadway, na rua São José. O “point”era a “Bombonière do Passarella” e o bar Nova Aurora, onde está o Bradesco, local para se tomar “frappée” de coco. Os rapazes ficavam próximos do meio-fio das ruas, vendo as moças ricas e bonitas passando. Ver televisão ainda não era um vício, pois poucas casas tinham o aparelho de tevê e os programas ainda não mostravam grandes atrativos. Estudantes varavam as madrugadas conversando em bancos de jardim, comendo sanduíches na “Leiteria Brasileira”(na parte inferior do Clube Coronel Barbosa) ou no Bar do Tanaka, na rua São José. Homens maduros saíam das noitadas de jogatina no Coronel e iam jantar no restaurante “A Bahiana”, no mesmo quarteirão. E, pela madrugada, seresteiros, boêmios, policiais, motoristas de táxi, prostitutas se reuniam no Bar do Tanaka, depois que o movimento ia decrescendo no Jardim Brasil, a zona do meretrício – que João Guidotti, maldosamente, chamou de “Ripolândia”, para agredir o adversário Romeu Italo Rípoli. Yvone Mansur, a Ruth, seu nome de guerra, reinava absoluta no meretrício, amiga de políticos, de empresários, de jornalistas e autoridades públicas.

Não posso dizer que os tempos eram “risonhos e francos”, mas eram mais alegres, na voz de Elvis Presley, na rebeldia da “juventude transviada”, que tinha como ícones Marlon Brando e, depois, James Dean. Os Beatles viriam pouco depois. O fato é que 1959, em Piracicaba, despertava ânsias de transformações. E Luciano Guidotti, na Prefeitura, ia fazendo-as, como se fosse um trator, modernizando a Cidade, rasgando avenidas. Era como se tudo estivesse preparado para o novo, sem que ninguém soubesse o que era isso. Foi, então, que apareceu Mauro Pereira Vianna, o Mauro Vianna, inspetor-fiscal da Secretaria da Fazenda, transferido de Bauru para cá, em promoção de carreira. Eu estava no “Diário de Piracicaba”, entre dublê de auxiliar de revisão, do Osvaldo de Andrade — uma das culturas mais lúcidas daqueles tempos, o velho Osvaldo – e de redação, onde “cozinhava” notícias, redigia crônicas que davam dores de cabeça ao Sebastião Ferraz. Foi quando o Mauro Vianna apareceu. E eu me encolhi, lembrando-me da mentira que eu lhe pregara em Bauru, receoso de que ele me identificasse.

Eu ouvira falar de Mauro Vianna em Bauru, onde passava minhas férias de adolescência e juventude. Naquela cidade, Mauro Vianna era famoso por um programa radialístico, na linha do terror: “Conte seu caso”. As pessoas lhe enviavam “casos e causos”, o Mauro os radiofonizava, transformando-os em rádio-teatro. E eu, estando em Bauru e estimulado por meus primos, lhe enviei um “causo” que jurei ter acontecido em Piracicaba. Tratava-se de uma de nossas lendas ou até mesmo de mentiras que me eram contadas pelo inesquecível Júlio Bluhns, em nossas andanças noctívagas pela Cidade. Júlio me levava até a porta do Cemitério, falava de uma jovem que, em noites de lua-cheia, saía do túmulo, aguardando o noivo inconsolável.

Por Júlio Bruhns, eu tinha um fascínio absoluto, ele me encantava com sua cultura, com suas excentricidades, sem que eu soubesse que ele tinha parentesco com o imortal Thomaz Mann. Sou capaz de jurar que vi o espírito da noiva sair do túmulo, ficar vagando pelo cemitério, muito embora as pessoas me dissessem que eram delírios meus, que eu via, apenas, a bruma da noite piracicabana. O fato é que “contei o caso”, escrevendo para o Mauro Vianna. E ele radiofonizou todo aquele drama de terror.

Vim a conhecer o Mauro, pessoalmente, apenas na redação do “Diário de Piracicaba”, medroso de que ele me identificasse, descobrindo a mentira que, literariamente, eu lhe pregara. E, então e de repente, ele não era mais o Mauro Vianna, mas o “Marco Aurélio”, o colunista que se transformara, da noite para o dia, na grande estrela daquela jornal. Despretensiosamente – e por sugestão do Sebastião Ferraz – o Mauro Vianna, que desejava exercer o jornalismo em Piracicaba, iniciou a coluna “Café da Manhã”.

Estou entre as testemunhas do que aconteceu: foi uma explosão em Piracicaba. De início, uma explosão jornalística. E, logo em seguida, uma explosão social, de costumes, de hábitos, de transformações para as quais a Cidade – ainda que ansiosa por tê-las – não estava preparada. As elites econômicas piracicabanas, fechadas em si mesmas, abriram-se. As mansões, os palacetes – antes fechados em nichos apenas familiares – abriram-se, escancararam-se.

Mauro Vianna – despertado para o colunismo social – inspirara-se claramente em Ibrahim Sued, que fazia furor no Rio de Janeiro, influenciando todo o País. Ninguém, na verdade, se deu conta do que estava acontecendo, do fenômeno social que ocorria em Piracicaba. Mas era uma revolução. A Cidade deixava de olhar para o seu próprio umbigo, refinava-se, tornava-se elegante, voltava-se para a moda e os maneirismos. Qualquer estudioso do fenômeno do “dandismo” – ainda que com suas influências tardias no Brasil, na “belle époque” – poderá localizá-lo em Piracicaba nos anos de 1959 e 1960. Era o “dandismo” acontecimento. Piracicaba inaugurava um estilo de vida, moderno, alegre, festivo. As elites econômicas integravam-se mais à sociedade como um todo; a classe média rompia sua timidez, buscando ascensão social, reconhecimento. E tudo passava pela coluna de Mauro Vianna, pelo “Marco Aurélio”, no registro do “Café da Manhã”. Piracicaba não ia trabalhar sem, antes, ter lido o “Café da Manhã”. Nos chamados “anos dourados”, Piracicaba conhecia – ainda que tardiamente – o estilo de vida que fora proclamado pelo “Dandismo”.

Esta edição eletrônica do “Almanak” de “A Província” é uma tentativa de resgatar a memória daquele tempo. Acredito que, para os estudiosos de nossa Cidade, isso possa se transformar em subsídio para interpretar tudo o que ocorreu depois. E para lamentar as últimas décadas perdidas, estagnadas. (CONTINUA)

2 comentários

  1. Roberto Antonio Cera em 16/08/2017 às 11:20

    Putz! Baita lembrança, encerrando com uma doçura ainda minha amiga, aliás, uma das prediletas.
    A Kiki.

  2. Antonio Carlos Cavalli em 16/08/2017 às 18:43

    Bom lembrar daqueles tempos. Ter sido um jovem e vivenciar essas lembranças, tão bem descritas pelo Cecílio, é um grande prazer que traz muita saudade.

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