Os “Anos Dourados” em Piracicaba (6): o antigo e o novo “recebem” com requinte

“Receber”, aulas de etiqueta

E, com o “receber”, aconteceu o mesmo processo do “acontecer”.

Antes de Mauro Vianna e do “Café da Manhã”, as elites piracicabanas mantinham suas belas casas e mansões fechadas, acolhendo poucos amigos, familiares. Havia requintes e civilidade, sim. As antigas famílias, oriundas da aristocracia rural, tinham “finesse”, refinamentos. Piracicaba fora, no Império, terra de barões. E de figuras com vivência nos salões da Corte, nas fulgurações de Paris. O Senador Vergueiro, Luiz de Queiroz, os Conceição, os Pacheco e Chaves, os Morato, os Botelho, (Foto: o casal Carlos(Dalila Botelho)Toledo) os Arruda, os Toledo, os Gonzaga, os Moraes Barros, os Castro Neves, os Ferraz, os Almeida — muitas e muitas famílias viviam finesses francesas. Os colégios Piracicabano e Assunção – dos metodistas e das freiras católicas – esmeravam-se em educação de elites, de preparação para a vida social. Ao lado dessas famílias, havia pioneiros de origem européia: os ingleses na Fábrica Boyes, os Diehl, os Krahenbull, os Kiehl, tantos outros.

No entanto, nos anos 1950, Piracicaba tinha outras lideranças, surgidas do trabalho, das oficinas, dos migrantes, especialmente os italianos: eram os Dedini, os Ometto, os Morganti, os Romano, os D Abronzo, os Gianetti, os Guidotti. O poder econômico mudara de mãos. Mas o político e o social ainda não se tinham consolidado. Eram famílias ricas, poderosas, mas ainda socialmente excluídas ou apenas suportadas, e com desconfiança crítica, pela velha classe aristocrática. (Foto: Miguel Bisogni, João Guidotti, Frei Estêvão, Renato Guerra de Andrade, Lélio Ferrari.)Esta, formada e educada num universo de influência francesa, escandalizava-se com o que julgava ser aventureirismo das lideranças emergentes, o pragmatismo delas.

Mauro Vianna carrega heranças de uma infância sofrida, de adolescência difícil. E, ao mesmo tempo, de uma educação esmerada, que lhe foi proporcionada por seu padrinho e mentor, o intelectual e político Osny Silveira. Portanto, os dois mundos – do requinte de famílias estabelecidas por hereditariedade, e o da conquista de um espaço, vindo da exclusão social – eram-lhe conhecidos. Em Bauru, havia a experiência de uma cidade sem história, a construção a partir de lutas e de desbravamentos. Em Piracicaba, havia uma história, consolidada mas em transformação, dois mundos em confronto, o velho e o novo em choque. Por exemplo: a secular finesse da Chácara Nazareth, dos Pacheco e Chaves, nada tinha a ver com a mansão, imitando o estilo colonial sulista norte-americano, de Mário Dedini, na rua Santo Antonio. Ou: a sobriedade aristocrática – ao estilo dos casarões do Brasil-Colônia – dos Gonzaga e dos Castro Neves nada tinha, também, a ver com a opulência das residências dos D Abronzo e dos Guidotti.

Mauro Vianna, na sua sofrida formação, conhecia esses dois mundos. E – o que poucas pessoas entenderam – a sua coluna foi a representação de todo esse conflito, que foi o conflito, também, de uma época, de um tempo. Mauro Vianna foi capaz de entender o requintado e o vulgar, de viver os dois lados. O “dandismo”, numa análise simplista, nada mais foi, historicamente, do que essa tentativa de conciliar o informal com o formal, uma sociedade que encontrasse a síntese entre o passado e o futuro, a certeza da decadência com a fluida esperança do novo.

O “Café da Manhã” refletiu esse conflito, esse choque de dois mundos. (Em recente conversa com Mauro Vianna, voltei a indagar se ele tinha consciência do que estava ocorrendo naqueles anos, daquilo que ele deflagrara. Honestamente, ele me disse que não tinha consciência disso, da mesma forma como Sebastião Ferraz não o percebera. Tinha sido intuição, instinto.) Foram intuições. E, também, reações. Sebastião Ferraz e Mauro Vianna – dois estranhos à velha sociedade piracicabana – propuseram mudanças, fizeram mudanças, num universo enraigado de conservantismos, cujo porta-voz era o “Jornal de Piracicaba”, com Losso Neto respondendo por aquela herança do passado.

O fato é que, entre aqueles dois mundos, Mauro Vianna teve a audácia de ser árbitro da modernidade que surgia através de um “dandismo” local. E o fez, inicialmente, com habilidade, mas com ironia. Começou, desde a sua terceira coluna — no dia 18 de março de 1959 — a transmitir lições de etiqueta, levantando questões primárias de convívio social: “como agir quando, numa reunião, se estende uma xícara de café?” Dirigia-se à “sociedade emergente”, estimulando-a a sair de si mesma. E – como quem estivesse jogando peteca – exaltava a civilidade da “velha sociedade”, dando destaque a encontros com Samuel (Elza) de Castro Neves Filho, ao concorrente do outro jornal, Losso Neto, na coluna de 25 de março.

Mauro Vianna, desde o início da coluna, estimula a sociedade piracicabana a “receber”, a abrir seus salões, a fazer festa, convites para que o “antigo” e o “novo” se encontrassem. E pôs-se a derrubar barreiras, tentando provar que, para ser elegante, não era necessário ser rico, muito embora a dura realidade revelasse que era preciso ter um mínimo de recursos para manter-se a elegância na convivência social. O mérito na elegância, no “savoir vivre”, no requinte de salões, no “receber”, na “finesse” social colocada como finalidade de vida, a vivência de uma nova moral que, naqueles anos, seduzia a todos, como um sonho.

O sucesso de Mauro Vianna, propondo o “receber”, aconteceu quando Mário Dedini – o líder daquela nova ordem, da nova classe – abriu os seus salões para a sociedade piracicabana, antes exclusivos a pessoas selecionadas, entre os quais políticos, empresários, embaixadores, autoridades. Na mansão da Rua Santo Antonio, o “antigo” e o “novo” finalmente se encontraram. O “receber” e o “acontecer” uniram dois mundos que se faziam antagônicos. Os remanescentes da aristocracia rural e os novos líderes da era industrial – os sofisticados e os novos-ricos, como estes eram chamados por aqueles – estavam juntos nos mesmos salões. Intelectuais, artistas bebiam do mesmo champanha e uísque dos capitalistas que eles combatiam. Ressurgiu o mecenato, com o aparecimento de “hostess”, que Mauro Vianna ia registrando, convidado que era a participar de jantares, recepções, coquetéis. E houve o “dandismo” em Piracicaba, ainda que historicamente tardio, mas atualizado num Brasil que se modernizava.

Beneficiado, comércio se renova

Os anos 50 foram marcados pela euforia e por um novo desenvolvimento. Em Piracicaba, se isso se tornara concreto através da obra renovadora de Luciano Guidotti, a coluna “Café da Manhã” acabou tornando-se responsável, também, por um novo estímulo aos comerciantes locais, especialmente no setor de vestuário, de cosméticos, de alimentação e lazer. O comportamento tradicional de atendimento teve de se transformar, renovando-se para atender a um novo tipo de demanda, mais sofisticada. As pessoas queriam vestir-se mais elegantemente, ser mais bonitas. (Foto: O casal Aristides(Lidia) Gianetti, com a filha Lizete, em noite de gala.) O “Baile da Consagração” – no qual seriam apresentados os eleitos como mais elegantes, as garotas-encanto, cavalheiros mais refinados – agitava a Cidade, mobilizando o comércio de roupas, transformando as antigas costureiras e os alfaiates em verdadeiros modistas, cabeleireiros tornavam-se “coiffeurs”.

Foi um tempo de ouro para lojas como A Porta Larga, Galeria dos Tecidos, Casa São Paulo, Céu Cor de Rosa, Kraide, Elmo Magazine. Mauro Vianna interviera pessoalmente e conseguira trazer para Piracicaba a Clipper, então uma das mais famosas lojas de roupas de São Paulo. Cabeleireiras conhecidas tornavam-se famosas, como Albina e Odete; na Vila Rezende, Assunta e o então muito jovem Nande. (Mesmo assim, era comum senhoras freqüentar, em São Paulo, os salões do famoso “coiffeur” Antoine, na Praça da República.). Costureiras talentosas passavam a ser modistas requisitadas, entre elas, especialmente, Linda Maluf, Itália Raphael, Maria Moniz. E, no “receber” – jantares, banquetes, coquetéis – os serviços de Célia Perches, e depois Margô, cozinheiras e doceiras eméritas, eram requisitados permanentemente, instalando-se os “buffets”. E, para envaidecimento de Piracicaba, a coluna de Mauro Vianna detonara o surgimento do primeiro conjunto de bossa-nova, num tempo em que a música brasileira se renovava: era o Conjunto Café Soçaite.

No “Café da Manhã”, Mauro Vianna como que orquestrava a movimentação da moderna sociedade piracicabana. Nas ostras fechadas, havia pérolas.

 

(Fotos dos arquivos de Mauro Pereira Vianna.)

1 comentário

  1. luciene em 17/05/2017 às 17:02

    Um horror

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