Presente de Natal

Mitia abriu a cortina. Fomos acordados pela claridade que invadiu subitamente nossas caminhas enfileiradas no centro da quarto, perto do guarda-roupa. – Está na hora de levantar meninos … todos em pé … vamos.

Minha irmã nos ajudou a vestir … Achava-se de branco nesse dia, com discretíssimos rendados negros no punho e no colo, nos bolsos ao longo das costuras da saia. O broche de mamãe segurava seus cabelos para trás; seus olhos brilhavam – ela sorria e nos beijava. De repente lembrei que havia chegado o dia. Eu vinha acompanhando sua aproximação fazendo cruzes na folhinha.

– Os presentes. – Minhas palavras, repercutiram pelo quarto, paralizaram meu irmãozinho, chegaram à cozinha e fizeram cessar, como por encanto, o ruído dos tamancos de mamãe. Senti a garganta apertada, como se tivesse falado um nome feio: imperdoável. Quando meu irmãozinho precipitou-se para baixo da cama eu não o acompanhei. Sabia que não havia nada. Todos os anos achávamos presentes – coisinhas modestas, é claro, feitas por mamãe, ou compradas no saldo das lojas. Nesse ano não havia brinquedos. Lembrava de não ter recebido presente só uma vez – no ano que papai morreu. Subitamente atinei que alguma coisa de muito grave havia acontecido para não ganharmos nada e me pus a chorar. Meu irmãozinho também e mamãe veio nos distrair ..

– Por que Mitia ganhou um vestido novo e nós nada? Por quê? – perguntei.

– Chi, vocês até parecem meninas manhosas. Mitia ganhou o vestido porque temos visita. Ela vai se comprometer … Seu Jorge vem pedir para casar com Mitia …

– Mas Mitia é namorada de Francisco!

– Paulinho, Francisco foi embora. É melhor que você saiba aqui que na rua. Ele se casou a professora do ginásio e mudou para São Paulo. Não ligava para Mitia. Por isso seu Jorge vai casar com sua irmãzinha. Agora seja bonzinho e fique quieto enquanto vou preparar o almoço.

Mitia e seu Jorge: última coisa que eu esperaria. Ele, dono da fábrica de vidros onde ela trabalhava, não se cansava de assediá-la com pedidos, presentes e bilhetinhos. Dizia ter-se enamorado dos «cabelos negros, dos olhos verdes e do corpo roliço», mas ela não suportava sua caratonha gorda, suada, bigoduda, cheia de sorrisos malévolos e dentes podres. Amava o rapaz do escritório, e muitas vezes encontravam-se na saída do trabalho. Francisco foi despedido quando seu Jorge soube do caso, mas continuou namorando minha irmã. Um dia ele não apareceu.

Mitia não parava de chorar à janela, esperando seu regresso. Passaram-se os meses. Francisco não voltava e ela começou a ficar esquisita.Empalideceu, os olhos incharam e a barriga também. Ultimamente gemia a troco de nada e mamãe abanava a cabeça enquanto prendia suas mãos. Então levaram-na à mulher que é caseira de uma granja situada a vinte quilômetros da cidade.

Por isto fiquei admirado ao encontrá-la em casa naquela manhã. Estava mudada. Voltara a ser como antigamente – desinchara. Parecia feliz. Depois de nos arrumar foi ajudar mamãe e as duas passaram a tarde lidando na cozinha.

Anoiteceu.

Bateram na porta. Seu Jorge entrou carregado de presentes – todos para Mitia. Ficou longo tempo conversando com minha irmã e depois sentamo-nos à mesa.

– Meninos, seu Jorge agora é noivo de Mitia – disse mamãe com jeito de quem vai chorar. Mitia não se mexeu e ficamos olhando a cara risonha de seu Jorge. Meu irmãozinho perguntou:

– Ele não trouxe nada para nós?

Mamãe pendeu a cabeça no prato e depois de longo tempo nos olhou sorrindo:

– Agora que me lembro. Vocês ganharam o melhor presente do mundo. Venham, venham ver.

Puxou-nos até uma cesta que estava em cima da mesinha. De dentro olhava-nos um nenê de grandes olhos graves, cândidos e perscrutadores como os do mergulhão que procura a presa no fundo do mar. Sua pele era lisa, suave, fresca e seus bracinhos agitavam-se crispados.

– É o menino Jesus? – perguntou meu irmãozinho.

-É o menino Jesus! – respondeu seu Jorge pondo-se a rir estupidamente.

N.A. – O conto foi oferecido, em 1960, ao Departamento de Difusão Cultural de Piracicaba – Prefeitura Municipal

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