Projeto Beira Rio: O espírito do lugar (II)

Em busca de um diagnóstico que, nascido da análise daqueles que ao lado do rio Piracicaba têm vivido ao longo das últimas décadas, o antropólogo Arlindo Stefani fez com que as pessoas, mais do que discutir conceitos, se dispusessem a observar fatos. E, nasceram, então, nos passeios pelo rio, a pesquisa da campo, o surgimento da poesia, aos borbotões.Quadro de Lionela Fioravanti

A primeira visita envolveu a colaboração de nove pescadores. Partiram do Salto, foram descendo até Tancuã, em seus 40 a 60 quilômetros. Nove canoas, 17 membros da comissão, durante oito horas. E, depois, então, as caminhadas de observação a pé, fazendo o rio conhecido a grupos que cresciam cada vez mais, envolvendo mais e mais pessoas. No total, foram 25 caminhadas, em grupos de diferentes tamanhos.

E houve as redescobertas: do Porto dos Índios, da Lagoa das Almas, da Boyes, Agência Torres, Shopping, Bongue, e as reuniões com as comunidades em seu próprio território – Ártemis, Monte Alegre, Tancuã, Rua do Porto. Delas nasceram projetos locais, que depois articularam-se com projetos de outras entidades.

Estava feito o diagnóstico. Começavam a ser redesenhados os mapas. E nascia o Projeto Beira Rio.

O espírito do lugar

Das mais ricas e criativas conclusões , pela maneira como foram desenhadas, destaca-se, no Projeto Beira-Rio, a forma como o espírito do lugar – a relação rio/município – é apresentado com o passar do tempo: pelas beiradas do rio, ao longo dos ciclos da economia que envolveu a Cia Boyes, os Morgante, os Rezende. Enfim, como deslocamentos do centro do mundo piracicabano, nos últimos 500 anos.

O primeiro centro do mundo de Piracicaba é o lugar dos índios. A taba é apontada como a fundação do lugar, antes mesmo dos povoadores brancos, pelo antropólogo Stefani, já que a comissão envolvida no Projeto nela não se deteve. As referências por ele recuperadas foram o Porto do Índios, situado na margem direita, na altura do obelisco do povoador, a oeste do Engenho Central; a lagoa, hoje assoreada, que os primeiros povoadores denominaram Lagoa da Almas; a taba central dos índios; o cemitério, situado na margem esquerda na encosta da colina, que cobria a área alta da Boyes, o Palacete. Um centro do mundo que, na análise do antropólogo, teria durado milhares de anos, destruída pelo europeu colonizador.

Mas veio a civilização e o centro do mundo de Piracicaba mudou. O povoado situou-se em torno da capela dedicada a Nossa Senhora dos Prazeres, do lado leste da Lagoa das Almas e, decerto, não longe do sítio da taba. A nova civilização olhou para oeste, mas não subiu o rio acima do salto, que funcionou como barreira tanto para os peixes como para os barcos. Na margem direita é o povoado promovido à Freguesia, em 1774.

E mais uma vez o centro do mundo se desloca, a partir de 1784, quando a sede da Freguesia muda para a margem esquerda, onde hoje é a rua do Porto, na base da colina, reputada mais sadia para se habitar.

Então, em 1821, com a criação da cidade de Constituição, veio a cidade Fábrica de Tecidos Arethusina, fundada por Luiz de Queiroz: ciclo industrialpara os altos da colina, onde hoje está a Praça José Bonifácio, único centro do mundo de Piracicaba que se afastou do rio, embora o porto continuasse sendo eixo comercial. A comunidade de cima era agora a cidade, mais rica e civilizada. A debaixo manteve sua identidade, com os pescadores. Embora com o tempo e com a construção de novas casas as duas localidades se transformassem numa só, as identidades permaneceram. “E o centro se deixou ficar, no topo da colina, por cerca de 150 anos”.

Mas foi em 1988 que o poder institucional voltou às margens do rio, com a inauguração do novo prédio da Prefeitura Municipal. O poder simbólico fazia com que se desse o retorno do centro do mundo para a beira do rio, embora num processo ainda em construção, com o poder do centro urbano, da Praça

José Bonifácio mantendo-se forte.

A cada um destes períodos, o Projeto Beira-Rio vincula memórias específicas que, ao serem recuperadas, poderiam garantir a reconciliação e a valorização com a própria história e o espírito de Piracicaba. Seriam elas a memória indígena, a memória caipira – elo entre a memória do colonizador branco e o índio –, a memória afro-brasileira trazida com a escravidão, a memória dos imigrantes – especialmente a italiana, localizada em Monte Alegre – e a memória industrial, fixada após a desativação do Engenho Central, a fábrica Arethusina e Monte Alegre.

A síntese dos ciclos

Para esboçar a tese que definirá a recuperação do entorno do Rio Piracicaba, o Projeto Beira-Rio traz uma síntese que será uma das bases fundamentais para se compreender as propostas posteriores de intervenção. Na íntegra, sua reprodução:

“A relação rio-homem-rio deu nascimento ao espírito do lugar. Este percorreu três grandes ciclos econômico-sociais e ambientais para nos introduzir no atual.

O ciclo do índio, do colonizador, do povoador compreende a época imemorial até o momento em que Rezende ( o barão) e Queiroz ( Luiz) se aproximam do Salto. Ali descobrem que o rio é energia, além de ser peixe. Começa, então, a era industrial, filha do Salto.

O ciclo industrial dura 100 anos. Começa com o primeiro golpe de picareta e termina com o giro da chave fechando o Engenho Central. Ainda prossegue na margem esquerda, esmorecendo lentamente.

O ciclo da informação começa naquele giro de chave que se repete cinco anos depois em Monte Alegre. Dos três ciclos, somos os primeiros a não jogar fora o passado, pois o integramos na memória do futuro. Enfim, começamos seriamente a fazê-lo desde o grito do prefeito em 1989. Fazendo isto, acordamos a memória de todos os ciclos passados, desde o índio até o Elias dos Bonecos – paradigma de nós todos. A ele vem se juntar o Visitante, nosso novo industrial da cultura do turismo”.

O estranho desprezo às beiras

Entre as várias análises que o Projeto Beira Rio buscou alinham-se as dos cientistas e técnicos. Deles veio a comprovação de um estranho fenômeno, não comum em outros locais, mas que caracteriza o Piracicaba: o desprezo pelas beiras do rio. Como garante o relato: “500 anos depois dos índios, as beiras continuam sendo desprezadas e reduzidas à vaga noção de barranco, para onde vai dar toda a miséria do mundo”. A exceção são algumas poucas residências. A importâncias das beiras não acontece na Rua do Porto, no Clube de Campo, ao lado do Shopping Center ou do Engenho Central.

Estranha contradição, já que os cientistas, seja nas áreas humanas como físicas, paisagistas e artistas, como lembra o trabalho, compreendem a beira como a pele da vida do rio e da cidade, a interface. E será, portanto, necessário revitalizá-las.

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