Rua do Porto: jardim à beira rio plantado (1)

O “Memorial de Piracicaba/Almanaque 2000” buscou contar parte da história piracicabana no Século XX a partir de um lugar que é berço da terra amada: a Rua do Porto, as margens do rio. Em 2004, na placa que registrou a grande transformação urbana do local a partir de iniciativa do então prefeito José Machado, o autor foi honrado no convite para criar o texto referente ao evento, no monumento à beira rio. Foi o seguinte:

“Nestas margens e nestas águas,

está o sagrado da terra.

É a pia batismal de um povo. Lugar de ofertório e de render graças.

Aqui, Piracicaba renasce, jardim à beira rio plantado.

Cecílio Elias Netto

(…) novembro de 2004 ”

 

Em A Província.com, buscamos enfatizar essa história, a partir daqueles textos, na convicção de ser a nossa rua mágica.

A Rua do Porto, pia batismal

O primeiro registro escrito do nome “Rua do Porto” é de 9 de abril de 1863. Foi quando se publicou a autorização para a Câmara pagar 193$600 a Oliveira Leme, “que plantou árvore em roda do pátio da Matriz e da rua do Porto”.

A Rua do Porto era, em 1900, ainda esse palco de contradições e de conflitos, mas onde sempre pulsou a alma piracicabana. Desde o início da povoação, a vida acontecia à beira rio: negros, índios, caçadores, capitães do mato, garimpeiros, pagadores do governo. Os batelões chegavam cheios de cargas que ficavam no depósito da Companhia Fluvial, um barracão que viria ser o Clube de Regatas ao longo do Século XX. Depois, a decadência, o lugar perigoso, quase hostil.

Apenas o humilde imigrante italinao Afonso Pecorari, de seu armazém e já orientando o filho Alidor, o Lelé, conhecia todos os que iam e vinham, pescadores, oleiros, prostitutas, as negras que a cidade enjeitava, os homens com cara de maus que, acompanhando Manduca Duarte — o velho bandeirante — serpeavam o rio em direção ao Marins.

Os moradores — desde o empresário Buarque de Macedo, que adquirira o Palacete Luiz de Queiroz no alto da colina aos donos de olarias — queixavam-se por ser lugar insalubre e abandonado pela Intendência. Quase ao lado do Largo dos Pescadores, despejava-se o esgoto da Cidade, lugar mal-cheiroso que as pessoas mais bem educadas haviam apelidado de “Vesúvio”, mas que o povo chamava de “Bosteiro”, nome que quase atravessou o século: “não vão nadar no `Bosteiro´ que lá pega doença”, diziam as mulheres do povo para os meninos que iam em busca da sedução do rio.

O redator do “Almanak 1900” – Manoel de Arruda Camargo — reconhecia as deficiências, os problemas da rua do Porto, mas se desmanchava em prazer ao descrevê-la: “a rua do Porto em dia de festa é, mutatis mutandis, a baía do Botafogo, no Rio, em dia de regatas. Valha o simile.” Mas reconhecia não ser um “lugar sadio e, valha a verdade, é o único ponto paludoso de toda a cidade.” E, também – sendo rua acompanhando o rio — “na sua bela curvatura, a única rua torta de toda Piracicaba.” Era quase diante dessa curva do rio que Afonso Pecorari montara seu armazém e bar, que se tornaria o atual Restaurante Arapuca, ainda da família Pecorari.

Afonso tinha sido chefe de navegação no antigo porto de Araquá. Ele e o lendário Manduca Duarte poderiam contar como fora a rua do Porto, toda plantada com resedás. Famílias de oleiros e de pescadores exercitavam a solidariedade diante de tantas lutas, especialmente quando o rio — por causa da noiva virgem que repousava em seu leito, outra rica lenda — se punha a roncar e, inquieto, atravessava as margens, inundava casas, alagava olarias, campos.

Nhô Manduca Duarte – sertanista experimentado, dizia-se que sócio oculto do Barão de Serra Negra em terras distantes — lamentava-se, mas conhecera coisa pior nas lonjuras de Mato Grosso e Goiás. E dizia do que vira, até mesmo da terrível enchente de 1896, de que ninguém se esquecia, “quando canoas entraram nas casas pelas janelas”. Eles eram dos que tinham visto os áureos tempos da Companhia Paulista de Navegação Fluvial, sonho antigo de João Luiz Germano Brunhs, concessão imperial de 1873. Eram os vapores “Piracicaba”, “Souza Queiroz”, entre outros — indo e chegando, desembarcando, recebendo carga e passageiros, a festa do povo a cada partida e a cada chegada.

Mas tudo terminara. Pois o trecho do rio, entre a rua do Porto e João Alfredo(Artêmis), era acidentado demais: as pedras no Bongue, corredeiras nas Ondas, nas Ondinhas. A conquista do ramal da Ituana até o Porto João Alfredo, se trouxera outra forma de desenvolvimento, empobrecera a rua do Porto, deixara-a aos seus próprios moradores, gente humilde, “barrigas verdes”, até mesmo oleiros que lutavam pela vida, na faina das olarias dos Nehrings, dos Pecorari, de uns italianos de sobrenome Ometto, do Juca Barbosa, – a única que fazia telhas curvas e que viria a ser, no outro século, do dentista Elias Cecílio. Era uma rua esquecida dos políticos que, apenas de quando em quando, se lembravam de reurbanizá-la. (Continua)

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