Sinfonia Piracicabana (1)

Em sua edição impressa, A Província divulgou originais de Leandro Guerrini que, com seu estilo inconfundível, nos deixou peças esclarecedoras de nossa história. É a SINFONIA PIRACICABANA que o saudoso historiador nos deixou. Publicamo-la em duas partes. A seguir, a Parte Um.

PATÉTICA

A morte do sargento-mór Carlos Bartolomeu de Arruda Botelho se registrou no dia 8 de fevereiro de 1815.

Então, tudo foi possível

RITORNELLO

Nos últimos meses do ano de 1797, a freguesia de Piracicaba abriu um bocado os olhos ao ambiente circunstancial que a rodeava. Bragança fora erigida em vila em outubro desse ano. São Carlos (Campinas) teve o mesmo destino em novembro. A 22 de dezembro de 1797 a freguesia de Arariguataba ganhou foros de vila, recebendo, no batismo novo, o nome de Porto Feliz

A gente da Freguesia de Santo Antônio de Piracicaba mirou com muita simpatia essa transformação político-administrativa, que dava à localidade vizinha prerrogativas melhores, no sentido de independência e progresso, a corte de regalias que lhe é própria. Sem dúvida alguma. Uma câmara local, sem os incômodos de jurisdição estranha, resolve anseios, acautela o território, pacifica a vida interna, espraia-se.

Todos nós sabemos o que é política: um saco-de-gatos. A política daquelas afastadas quadras era desse mesmo jeitinho, como nos dias atuais. A gostosura é que as futricas intestinais daqueles tempos são hoje pratos capitosos, na fome e sede da história, Entretanto, numa vila, com seu coletivo de vereadores, o juiz ordinário, o capitão-mór, o vigário, o juiz de órfãos, o escrivão da câmara, os tabeliães, as ordenanças são capítulos cheios de calor, um assunto de cartaz representativo. Freguesia é coisa de pobre, vivendo pela mão alheia. Na vila, fala-se no plural, fala-se com clero, nobreza e povo, fala-se com a boca repleta, com a barriga inchada do bairrismo agradável.

Pois é isso. Houve um bocado, um tênue bocado do despeito dos conterrâneos de 1797 com relação ao pulo gentil do Porto Feliz.

Araritaguaba se tornou bastante conhecida no mundo geográfico e governamental, desde os primórdios do século XVII. As minas de Cuiabá, as famosas monções, a colônia de Iguatemi, a entrada das bandeiras, o comércio do ouro e do sal, uma sociedade nascente enchiam fronteiras e prelibavam fantasias. O lendário Tietê, banhando a antiga povoação, era meio de transporte vital e insuperável — escoamento e acolhedouro de toda uma movimentação turbulenta, estratégica, romanesca, criminosa, pia. O rio dengoso dava contornos lapidares ao vilarejo que se impôs pela trepidação, ela procura, pelo vai-e-vem, pela lavoura, pelo sonho agitado.

Era o meio de transporte nota-cem. Superava as picadas, os caminhos, as estradas incipientes, que as chuvas do sertão se encarregavam de apagar. Superava as caminhadas exaustivas, o lombo-de-burro, vagaroso, incerto, sonolento. Preferia-o o homem. Fervilhante de canoas, de batelões que iam e vinham, levando ambições e trazendo suor, o Tietê era, positivamente, no dizer do poeta esquecida, o bandeirante líquido que varava a mataria, resmungando nas cachoeiras, dormindo nos remansos e recomeçando a porfia nas ondas motorizadas da viração.

É. A freguesia de Piracicaba olhou com simpatia especial a vitória de Araritaguaba e olhara com aplauso a graça alcançada por Bragança e São Carlos(Campinas). Simpatia, talvez, não fosse o acordo perfeito. Um acordo de quintas proibidas possivelmente, traduzindo a expressão da verdade, porque uma pontinha de inveja bruxuleava na alma dos locais. Um despeitozinhho que faz com que a vista se perca ao longe, um suspiro escapasse do íntimo, uma interrogação ficasse suspensa no ar.

Tal e qual. E Piracicaba? Por que nossa terra não passou de freguesia à vila, no embalo de Porto Feliz? Também não possuía um rio portentoso, habitado freqüentemente por canoas ariscas e batelões pensativos? Também não possuía seu comércio, suas plantações, as salsaparrilhas, a cana-de-açúcar, alvissareira e verdejante, com engenhos de apêndice? Eram positivas as suas picadas. Cuiabá também dançava na fama da povoação e Itu dera muito do seu para o desenvolvimento da futura “Noiva”. É até caso concreto que o capitão-general Bernardo José Lorena tivera palavras agradáveis com referência a Piracicaba, e o capitão-mor de Itu — Vicente da Costa Taques Goes e Aranha — bastante pugnara pelo progresso do torrão adjunto.

E as sesmarias? Não já tomavam a quase totalidade das terras imensas, varando os sertões de Araraquara ou acompanhado a fugida do rio? Quantos nomes já se citavam desde 1780 a 1792? Manuel Antônio de Araújo, Manuel Francisco da Silva, Manuel Francisco Gil, Felizberto Castanho Lara Lima, André Sampaio Botelho, Manoel José Velho, Carlos Bartolomeu de Arrruda, Manuel Pinto Ferraz, Martim de Melo Taques, Inácio de Almeida Lara, Modesto Antônio Coelho Neto, Luiz Teixeira de Toledo, José Goes, Francisco Rodrigues de Andrade e outros mais, sem falar nas terras do povoador Antônio Correia Barbosa. Quase todos esses sesmeiros já residiam em suas propriedades e poderiam muito bem tomar os cargos de vereança e das ordenanças, se Piracicaba passasse de freguesia à vila.

Já fazia treze anos que o vilarejo deixara a beira direita do rio para se implantar na margem esquerda, possuindo um pátio com quarenta e seis braças em quadra, “para edificar-se a igreja matriz”, mais “duas ruas direitas” e “duas travessas”. Nesse espaço de tempo, outras casas surgiram, outros sítios vieram participar do progresso continuado, outros contingentes humanos tomavam conta dos diversos setores da agitação local, mormente nos engenhos de açúcar que brotavam aqui e ali, impulsionando a circulação da seiva em eclosão.

E então? Por que Piracicaba não tinha ainda sua câmara própria, sua jurisdição exclusiva, suas autoridades eclesiásticas, sem depender de Itu, aborrecidamente, distanciadamente, subjugadoramente, sem sentido imediato?

O piracicabano dessas eras suspirou e acabou por achar que tudo estava certo. A freguesia de então não podia mesmo dar o salto ambicionado. Se tinha tudo, faltava-lhe tudo. Faltava-lhe um padre. Isso era a verdade abismal. Desde que Antônio Correia Barbosa abandonara a povoação para residir em Mogi Mirim, nossa terra começou a experimentar um período de pausa inoperante, terrivelmente acrescida com a ausência de um pároco. Frei Tomé de Jesus, de saudosa memória, se fora em 1788, quase nove anos. Como poderia a terra aspirar a algo sem o seu guia espiritual, sem o pastor de ovelhas, o conselheiro, o amigo de todas as horas?

Morria-se sem confissão. Casamentos se faziam sem a bênção da igreja, adiada, sempre adiada. Crianças cresciam sem os Santos Óleos. Não havia missas. Um mundo pagão se avolumava, pois Itu morava longe — quatorze léguas de picada, por caminhos ásperos e cheios de imprevistos. Ninguém se doutrinava. Não restava dúvida de que nossa terra sofria condenação extraterrena. Um padre poderia orientar a turma, um padre sabe falar direito, um padre conhece leis, sabe ler e escrever, impõe respeito. Sem essa orientação prática e eficaz, lúcida e incisiva, como poderia o aglomerado desejar coisa melhor? E o piracicabano daqueles tempos suspirava profundamente, achando que tudo estava certo, na determinação inflexível do Além. (Continua)

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