João Herrmann: República Socialista de Piracicaba (3)

De réu a vítima

Um fato curioso: a divulgação daqueles depoimentos levou-nos, diretores de jornais – Losso Neto e eu – a amargar um processo por divulgação de fatos e palavras “atentatórias à moral pública”. No entanto, o Prefeito João Herrmann Neto – ao recompor o seu secretariado e a reorganizar-se politicamente com a Câmara Municipal – escapou do processo de cassação de mandato … A maneira, porém, como aqueles depoimentos foram publicados acabou por causar efeito contrário: o Prefeito João Herrmann Neto, réu de grave crime contra o decoro do cargo, passava a tomar-se vítima da imprensa, de seus ex-colaboradores, dos políticos. João Herrmann Neto conseguia reverter a situação em seu favor. Num momento em que a imprensa brasileira começava a dar destaque especial a atos e acontecimentos de oposição ao governo militar, o prefeito de Piracicaba conseguia grandes espaços na mídia nacional, apresentando-se como vítima de um complô da burguesia, vendendo a imagem – que foi comprada pela imprensa – de estar em vias de perder o cargo por ter buscado implantar, em Piracicaba, uma administração voltada para o povo e com cunho e inspiração socialistas.

Do “Mar de Lama”, João Herrmann Neto emergia como vítima e herói. As camadas populares da população manifestavam-lhe apoio, solidarizavam-se com ele. Sedimentava-se, assim, uma liderança popular e “populista”, a primeira, desde Francisco Salgot Castillon, num tempo em que novos ventos começavam a soprar, anunciando outras transformações. Tinham início, naquele 1978, as corajosas greves no ABC paulista, surgindo a liderança forte e nova do metalúrgico Lula. O Presidente Geisel revogava os atos institucionais, a abertura política em direção à democracia começava a ser mais do que uma simples esperança. O General João Batista Figueiredo, indicado para suceder a Ernesto Geisel, mandava um recado: “Eu prendo e arrebento”, referindo-se aos que quisessem impedi-Io de redemocratizar o país. O filme que fazia sucesso em todo o país pela ousadia do tema era “Lúcio Flávio, o passageiro da agonia”, discorrendo sobre o “Esquadrão da Morte”. Havia, porém, contradições: ao mesmo tempo que se prenunciavam ares de liberdade – como a entrevista do mito e líder comunista Luiz Carlos Prestes, à revista “Isto é” – a censura impedia a exibição da novela “Roque Santeiro”, de Dias Gomes, do livro “Feliz Ano Novo”, de Rubem Fonseca, da peça teatral “Rasga Coração”, de Oduvaldo Vianna Filho. O mundo ficaria perplexo com o seqüestro, na Itália, do líder democrata-cristão Aldo Moro. Em Piracicaba, a UNIMEP passava por grandes transformações, com a queda do Reitor Edward Senn e a posse de Elias Boaventura, substituindo-o, num clima passional e festivo. Ao lado das complicações políticas, um acontecimento que enternecia a cidade: Dona Branca de Azevedo, respeitada líder política e feminista, completava 100 anos de idade.

O papel da UNIMEP

Cultivando as sementes lançadas pelo Reverendo Crysantho César em 1964, Richard Senn implantou a Universidade Metodista em Piracicaba, usando de pragmatismo e de uma inegável capacidade administrativa, cultivando estreita relação com as elites e os poderes públicos piracicabanos. Ao fmal de 1977, porém, iniciaram¬se as contestações ao perfil que Richard Senn delineava para a Universidade Metodista, acusações que enfatizavam a preocupação do Reitor quanto ao desenvolvimento físico da universidade em detrimento da qualidade do ensino, seus métodos tidos como ditatoriais e mercantilistas. Durante o XII Concílio Geral da Igreja Metodista, em 1978, um boletim da ADUNIMEP, associação dos docentes da universidade, detonou a crise, com críticas severas à administração do Reitor. Em Julho, o vice-Reitor, Elias Boaventura, renunciava ao cargo, aumentando as tensões da Universidade. De princí¬pio, Elias Boaventura deixara circular a versão de que afastava-se para atender a convite para o comando do Instituto Bennett, no Rio de Janeiro, chegando a assumi-Io. Mas, em declaração à imprensa – especialmente ao jornal “O Diário”, que passou a ser porta¬voz da crise na Universidade – revelou que se demitia por discordar da orientação que se vinha dando à UNIMEP. A crise adquiriu contornos definitivos: professores, diretores de centro, alunos, manifestavam-se contra a saída de Elias Boaventura, dificultando ainda mais a posição de Richard Senn que acabou renunciando ao cargo. No entanto, o Conselho Diretor, tentando superar a crise, não aceitou a renúncia nem de Richard Senn nem a de Elias Boaventura. Desentendimentos, greves, pressões, longas reuniões, manifestos, um clima de divergências totais passaram a tumultuar o dia-a-dia da Universidade, que se manteve paralisada até que, finalmente, o Conselho Diretor comunicou – na madrugada do dia 15 de Agosto – a disposição do Reitor Richard Senn e a imediata condução ao cargo do vice-Reitor Elias Boaventura que, logo mais, seria indicado para um mandato de quatro anos, tendo como vice-Reitor Almir de Souza Maia.

A partir daí, deu-se a guinada da UNIMEP em direção a uma abertura que viria a influir decisivamente nos destinos políticos de Piracicaba. Elias Boaventura – embora tendo-se declarado um Liberal – passava a manifestar tendências e simpatias socializantes, um “esquerdismo ingênuo”. (Entrevista, em 1992, do ex-reitor da Unimep, Elias Boaventura, ao autor.) A UNIMEP abria-se aos problemas da comunidade piracicabana, os seus projetos coincidindo com os que vinham sendo desenvolvidos, na área social e política, pelo Prefeito João Herrmann Neto. Na própria área esportiva, iniciava-se uma nova fase: em 1978, UNIMEP e Prefeitura uniam-se, criando-se a Associação Desportiva (A.D.UNIMEP) com ênfase a diversos esportes, embrião do grande time de basquetebol que, substituindo o E.C.xV de Novembro, veria a chegada da estrela Paula em Piracicaba, em 1980.

Em 1979, quando o Presidente Geisel revogou os decretos que coibiam os atos políticos nas universidades, a UNIMEP assumia papel de destaque junto à intelectualidade nacional e também em apoio aos movimentos populares. A anistia era uma reivindicação maciça da opinião pública. Exilados retomavam ao Brasil, como Leonel Brizola, Miguel Arraes, Femando Gabeira. Com o Presidente Figueiredo, abriam-se espaços para reivindicações políticas e sociais. Extinguiam-se ARENA e MDB, formando-se novos partidos, como o PMDB, PDS, PDT e PT. Nesse clima e cada vez mais próxima do Prefeito João Herrmann Neto, a UNIMEP, sob a orientação de Elias Boaventura, estimulava e participava de movimentos reivindicatórios. O Reitor Elias Boaventura dera, ao início de seu mandato, a tônica da abertura da UNIMEP aos movimentos populares. A periferia era o alvo. O Projeto Periferia – de educação, servindo-se de um núcleo de pré-escolas – iniciava-se pelo Bairro Matào. Viriam estímulos e apoios ao Movimento Negro, ao Comitê dos Direitos Humanos, ao Movi­mento pela Anistia, a Movimentos Feministas, além de assistência jurídica às pessoas carentes e o projeto de Pronto Atendimento para a Comunidade. A imprensa nacional acolheu, com espanto, as declarações do Coronel Dickson Grael que, em palestra na UNIMEP, fazia publicamente, pela primeira vez, graves declarações sobre o atentado no Riocentro, episódio que levara o General Golbery do Couto e Silva – um dos ideólogos da abertura democrática – a se afastar do governo de João Batista de Figueiredo. (Arquivos recortes de jornais da Reitoria da Unimep)

A UNIMEP transformava-se num cadinho ideológico, abrindo-se para todas as tendências políticas. Elias Boaventura haveria de dizer em entrevista da época: “Direita e esquerda plantaram guetos na universidade.” Mas eram as esquerdas as mais ativas e mais participantes. Dentro da UNIMEP. plantava-se, também, a criação do Partido dos Trabalhadores. Os estudantes mobilizavam-se. As crises e greves eram contínuas. No entanto, estava implantada uma tendência que acabou influindo diretamente na vida política de Piracicaba. A “república socialista de Piracicaba”, como era chamado o governo do Prefeito João Hernnann Neto, passou a ter. na UNIMEP, poderoso aliado. Caminharam de mãos dadas. Adilson Maluf, com a implantação do Distrito Industrial e o conseqüente agravamento dos problemas sociais da cidade, permitira o surgimento de uma nova população carente e desprotegida. O Prefeito João Hernnann Neto ­deixando-se imantar por planos e objetivos de cunho socializante – voltara-se àquela nova população periférica. A UNIMEP abria-se no sentido de conscientizá-Ia e de dar­lhe guarida. Completava-se, assim, um círculo. E Piracicaba passava a abrir-se para uma nova realidade, para um novo tempo.

A “esquerdização” da UNIMEP tornara-se tão notória e clara que isso passara a ter reconhecimento nacional. Lembro-me de que, estando, certa vez, no gabinete do então todo-poderoso Ministro Delfim Neto (planejamento, no Governo Figueiredo), em Brasília, ele me mostrou um processo de destinação de verbas à UNIMEP, que passava por grandes dificuldades financeiras. O Ministro Delfim Neto foi claro ao afirmar-me, e levei isso ao conhecimento de Elias Boaventura e Almir Maia: “As verbas não saírão enquanto a UNIMEP mantiver a linha ideológica imposta pelo atual reitor.” Havia antecedentes: Elias Boaventura atritara-se, anteriormente, com o Ministro da Justiça, Abi Ackel – atrito iniciado desde a mocidade, pois ambos eram da mesma cidade mineira, Manhuaçu – aumentando as dificuldades. Em telegrama, o Ministro chamara Elias Boaventura de louco … 62 Ao mesmo tempo que se atritava com o governo federal – e, também, com o estadual, à chefia do qual estava o Governador Paulo Salim Maluf – Elias Boaventura visitava Costa Rica e Nicarágua, sendo recebido, neste país, pelo Ministro da Educação, Carlos Tucuman, no período agudo pós-Somoza. Por outro lado, na área religiosa – lembrando-se que a UNIMEP tem como mantenedora a Igreja Metodista – Elias Boaventura estimulava o ecumenismo, telacionando-se com a esquerda católica da qual despontava o Cardeal Paulo Evaristo Arns – trazendo, a Piracicaba, aquele que era tido como um dos principais teólogos da Teologia da Libertação, Hugo Assmann, após 12 anos de exílio. Sobre Piracicaba, sopravam ares de grandes transformações políticas, econômicas, sociais. E, para João Herrmann Neto, surgia, com a UNIMEP de Elias Boaventura, a base cultural e intelectual de que ele precisaria para levar avante a “república socialista de Piracicaba”.

*CONTINUA

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