O movimento operário no interior paulista (5)

Algumas considerações sobre as greves no município e suas conexões com São Paulo

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A greve de 1917. (imagem: arquivo Edgar Leuenroth / UNICAMP)

As greves gerais em Piracicaba mantiveram conexões não apenas com São Paulo, mas com uma conjuntura histórica nacional e internacional. No ano de 1917, trabalhadores de diferentes países sofriam as consequências da Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Os países latino-americanos não participaram diretamente desse conflito bélico, mas nem por isso passaram ilesos ao confronto. Por um lado, a indústria brasileira foi incentivada a produzir muitos dos artigos que antes da guerra eram importados da Europa ou dos Estados Unidos, uma vez que essas regiões estavam agora concentradas em abastecer seus exércitos; por outro lado, aquilo que não podia ser produzido no Brasil e precisava ser adquirido de fora, entrava no país com um valor muito mais alto.70 Os salários dos operários brasileiros não acompanhavam a alta no preço das mercadorias, principalmente dos alimentos, e com as fábricas produzindo a todo o vapor para compensar as importações, a jornada de trabalho, já longa para aqueles homens e mulheres, se ampliou fortemente. 71

No mês de abril de 1917, os Estados Unidos da América ingressaram na guerra e essa nação era uma das principais fornecedoras de grãos para o Brasil. A alta nos preços dos alimentos em todo o território brasileiro foi quase imediata e sentida no bolso de todos os operários do país, incluindo os piracicabanos.72 Não foi sem motivo, portanto, que na grande greve geral de 1917, os trabalhadores do município encamparam a luta pela implantação das feiras livres em Piracicaba, enviando à Câmara Municipal um grupo de operários representantes para tratar especificamente desse assunto. Na capital paulista, as feiras livres já haviam sido adotadas pela prefeitura desde 1914 e para a classe trabalhadora representava a possibilidade de comprar produtos a um preço mais barato, livres dos impostos do mercado municipal que em Piracicaba era o principal espaço de compras desde o ano 1888. 73

Além da Primeira Guerra Mundial, o ano 1917 foi marcado pelo advento da Revolução Russa e por uma série de grandes greves operárias na Alemanha, França, Grã-Bretanha, Itália, Áustria e na Espanha. 74 A própria Revolução Bolchevique foi um evento ligado a um processo de organização sindical e política da classe obreira. O historiador Eric Hobsbawm apontou que a revolução de fevereiro de 1917 na Rússia teve início quando uma manifestação de operárias coincidiu com o fechamento das fábricas metalúrgicas pelos proprietários, o que resultou em uma greve geral, com a ocupação de São Petersburgo por centenas de trabalhadores.75 As mobilizações operárias do ano de 1917 em todo o mundo ecoaram muito além dessa data e ainda estavam vivas na memória da elite e da classe proletária no ano da greve geral de 1919 no Brasil.

O corte nos fios telefônicos em Piracicaba por parte de alguns operários foi chamado por um dos principais jornais da cidade, em 1919, de “Plano Bolchevista” e, para os jornalistas, o ato na empresa Bragantina seria o resultado da presença, no interior, do movimento operário piracicabano, de elementos maximalistas que eram aqueles socialistas que olhavam para a revolução que ocorreu na Rússia em novembro de 1917 como inspiradora de sua ação política. 76 O mesmo evento também foi compreendido à luz das greves operárias europeias e, de acordo com o Jornal de Piracicaba, o plano que objetivava saquear a cidade era uma imitação do movimento anarquista que vinha ocorrendo em alguns capoluogos italianos.77

A imagem caricata do perigoso italiano anarquista extrapolou o período da Primeira República e até hoje está presente em romances, filmes e documentários.78 A historiografia do trabalho no entanto vem demonstrando, desde pelo menos a década de 1990, a multiplicidade étnica e a complexidade ideológica do movimento organizado da classe proletária, desconstruindo seus estereótipos.79 A referência à Revolução Russa e a alusão à Itália, tudo sempre tratado como sinônimo de subversão e desordem, não era uma originalidade da imprensa piracicabana; em todo o país essas narrativas foram utilizadas com o objetivo de desqualificar o movimento organizado da classe obreira pelos seus direitos trabalhistas e civis.80

Além das conexões com o cenário internacional, o movimento grevista de Piracicaba manteve uma pauta de reivindicações idêntica àquela pleiteada em todo o território brasileiro.

No Brasil, na deflagração da greve geral de 1917, os trabalhadores não tinham folga semanal garantida por lei e, em geral, descansavam apenas no domingo, ou nem mesmo no domingo, dia reivindicado pela Igreja Católica. Também tinham longas jornadas de trabalho, sem férias. Era comum o atraso no pagamento, pois não havia nenhuma legislação que exigisse do empregador o pagamento pontual dos ordenados. O trabalho dos menores de dez anos nas fábricas, geralmente filhos dos operários, era rotineiro e está documentado nas inúmeras fontes iconográficas do período. A desigualdade salarial entre homens e mulheres, que eram submetidos às mesmas condições de exploração, com a adição do assédio sexual para as operárias, também era uma realidade. O pagamento pontual dos salários, a redução da jornada de trabalho, a regularização do trabalho feminino, a abolição do trabalho infantil e o aumento salarial, dada a grande carestia de vida  – todos pontos defendidos pela Comissão Operária de Piracicaba em 1917 –, foram reivindicações da classe obreira no Rio de Janeiro, em Porto Alegre, no Recife e em muitas outras pequenas e grandes cidades em 1917 e 1919.81 Todavia, o vínculo do movimento operário piracicabano com São Paulo foi ainda mais estreito.

A greve geral de 1917 estimulou na capital a organização de muitos sindicatos, na época também chamados de ligas ou uniões. A própria Federação Operária de São Paulo (FOSP) havia sido fundada em novembro de 1905, mas, dadas inúmeras dificuldades, desaparece em 1912, e ressurge como um dos resultados do movimento paredista de 1917. A FOSP foi uma organização criada a partir da iniciativa do sindicato dos carpinteiros, chamados trabalhadores da madeira, e sua sede estava localizada na região da Sé, em São Paulo. A entidade atendia principalmente os operários das fábricas na zona leste e se baseava sobretudo nas ligas operárias da capital, mas também foi a responsável por ajudar a organizar vários novos sindicatos no interior.82 A Liga Operária de Piracicaba, como a FOSP, também foi criada imediatamente após o término da greve de 1917, e por meio da imprensa piracicabana é possível acompanhar o passo a passo da sua fundação. Em uma matéria da Gazeta de Piracicaba, no dia 25 de julho, foi noticiado que os operários do município solicitaram o estatuto do Centro Operário de São Paulo a fim de criarem, a partir deste, o seu próprio regulamento.83 Após algum tempo, a Liga Operária de Piracicaba também se filiou à FOSP.84

Outro aspecto que une o interior à capital se refere ao papel desempenhado pelas Sociedades de Mútuo Socorro, algumas delas de características étnicas, isso em um momento no qual o estado paulista tinha sofrido os impactos da chegada das grandes levas de imigrantes europeus. A composição étnica da classe trabalhadora em Piracicaba não diferia daquela encontrada em São Paulo nas duas primeiras décadas do século XX.85 Havia um significativo número de italianos, espanhóis e portugueses no município, o que explica a fundação, em 1887, da Società Italiana di Mutuo Soccorro de Piracicaba, da Sociedade Beneficente Espanhola de Piracicaba, em 1898, e da Beneficência Portuguesa, em 1904.86 As sociedades de mútuo socorro desempenharam um papel importante no interior do movimento operário em São Paulo e também em Piracicaba. Na capital, ajudaram a representar muitos operários das categorias que ainda não contavam com um sindicato, extrapolando a função assistencialista como, por exemplo, na ajuda funerária aos sócios, e se empenhando na luta por direitos no mundo do trabalho.87 Em Piracicaba, a Sociedade Beneficente Operária era a principal organização proletária até 1917, e foi a sua bandeira que os trabalhadores levantaram em seus cortejos pelo centro do município durante o movimento paredista.88

referências: 

70. DEAN, Warren. A industrialização de São Paulo. 1880-1945. Rio de Janeiro/São Paulo: Difel, 1971. p. 94-114.

71. PINHEIRO, Paulo Sérgio, O proletariado industrial na Primeira República. In: FAUSTO, Boris (org). História geral da civilização brasileira, t. III, v. 2, Rio de Janeiro/São Paulo: Difel, 1978.

72. DEAN, op. cit.

73. Jornal de Piracicaba, Piracicaba, 18 jul. 1917. Biblioteca Municipal de Piracicaba, Piracicaba, SP.

74. BIONDI; TOLEDO, op. cit., p. 95.

75. HOBSBAWM, Eric, Era dos extremos. O breve século XX, 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 66-71.

76. Jornal de Piracicaba, Piracicaba, 12 jul. 1919. Biblioteca Municipal de Piracicaba, Piracicaba, SP.

77. Jornal de Piracicaba, Piracicaba, 23 jul. 1919. Biblioteca Municipal de Piracicaba, Piracicaba, SP.

78. BATALHA, op. cit.

79. Ver: TOLEDO, Edilene T. Travessias revolucionárias – ideias de militantes sindicalistas em São Paulo e na Itália (1890-1940). Campinas: Unicamp, 2004.

80. Ver: BIONDI, Luigi. Classe e nação: trabalhadores e socialistas italianos em São Paulo. Campinas: UNICAMP, 2011.

81. CASTELLUCCI, op. cit.

82. BIONDI; TOLEDO, op. cit.

83. Gazeta de Piracicaba, Piracicaba, 25 jul. 1917. Biblioteca Municipal de Piracicaba, Piracicaba, SP.

84. A Plebe, São Paulo, 8 set. 1917. Arquivo Edgard Leuenroth /AEL, Unicamp, Campinas, SP.

85. HALL, Michael. A imigração na cidade de São Paulo. In: PORTA, Paula (org.). História da cidade de São Paulo. A cidade na primeira metade do século XX, 1890-1954. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005, v. 3.

86. GUERRINI, op. cit.

87. BATALHA, op. cit.

88. Jornal de Piracicaba, Piracicaba, 18 jul. 1917. Biblioteca Municipal de Piracicaba, Piracicaba, SP.

(continua)

Para conhecer o artigo completo, acompanhe a TAG Greves Piracicaba.

*Fabiana Ribeiro de Andrade Junqueira é doutoranda em História Social pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Graduada e Mestre em História pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3431-6188. E-mail: [email protected].

[Este artigo foi publicado em revista da UFSC – Universidade Federal de Santa Catarina: Mundos do Trabalho, Florianópolis, v. 12, p. 1-21, 2020 | e-ISSN: 1984-9222 | DOI: https://doi.org/10.5007/1984-9222.2020.e74220 ]

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