O sonho de Manoel Gomes Tróia (1)

Para o médico Oswaldo Cambiaghi, primeiro historiador da Medicina em Piracicaba.

Trajetória de um sonho

Quando fui convidado a escrever a trajetória da UNIMED-Piracicaba em seus primeiros 33 anos de existência, completados em 2003, fui tomado de receios. Confessei-os à diretoria presidida pelo dr. Paulo Tadeu Falanghe ea ele mesmo. Pois, desde antes da fundação da Cooperativa e por alguns anos, acompanhei – em minha condição de jornalista e de cidadão – toda a saga para a realização de um sonho tido como utópico, “loucura” de um médico conhecido por seus ímpetos e realizações, o dr. Manoel Gomes Tróia.

Tive certeza de não ser uma história fácil de ser contada. Em primeiro lugar, pelo seu caráter polêmico, desde o início marcada pelo conflito formado por certezas e dúvidas, por crenças e cepticismos, por divergências que chegaram a abrir fendas na própria classe médica, não apenas de Piracicaba, mas em todo o Brasil. Estava em jogo a concepção hipocrática de medicina – como sacerdócio e serviço – e conceitos novos de profissionalização. De um lado, os que defendiam a idéia de uma cooperativa de médicos; de outro, alguns que já se organizavam em empresas qualificadas como “medicina de grupo”, tachadas de “mercantilistas”. Era uma grande batalha. E, desde o início, eu a acompanhara muito de perto.

Outra dificuldade que, confesso, me preocupava e me parecia impossível de contornar referia-se às fontes, à documentação, a registros. A UNIMED Piracicaba iniciara-se de maneira por assim dizer tão sonhadora e idealística que não houvera preocupação em resguardar a documentação histórica, organizar acervos, incluindo o fotográfico. Mesmo a informação oral seria difícil de obtê-la, dado o tempo que se passara, o falecimento de alguns de seus mais importantes protagonistas e a compreensível opção pelo silêncio de outros que testemunharam os primeiros tempos. Por outro lado, ainda que se reconhecessem a honestidade e a sinceridade dos entrevistados, havia o incontornável problema das versões, pois o mesmo fato é suscetível de versões diferentes, conforme os prismas através dos quais são vistos, de emoções ocultas e, também, de lapsos de memória diante do passar do tempo. Pois, eram mais de três décadas que se tinham passado.

O desafio, no entanto, era fascinante. Pois a UNIMED-Piracicaba se transformara, 33 anos depois, numa instituição piracicabana das mais respeitáveis, com serviços prestados à população numa dimensão ainda inavaliável. Seria, na realidade, acompanhar o nascimento, a infância, a adolescência e a maturidade de um sonho. Com seus conflitos, lutas, contradições, disputas, tudo aquilo que é inerente à condição e à natureza humanas, em sua caminhada através do Tempo. Assim foi que aceitei o convite e o desafio de Paulo Tadeu Falanghe e dos seus companheiros de diretoria, mergulhando numa longa, intrincada e difícil jornada. Que foi mais longa, mais intrincada e mais difícil do que imaginei.

Há falhas neste trabalho e sou o primeiro a admiti-las. Nenhuma, no entanto, consciente ou proposital. Ative-me a documentos que encontrei, aos poucos arquivos que ainda estavam resguardados e a depoimentos de atores e observadores dessa grande saga. De funcionários a diretores, de médicos a pacientes, tentei – com meus colaboradores – abrir o leque de informações que me foi possível. Assim, consciente das limitações que esse livro possa apresentar, sou o primeiro a admitir não se tratar de um trabalho final, conclusivo. Mas de um esforço de recuperação histórica que, resgatando muita documentação que se perdera e ouvindo testemunhos de personalidades fundamentais para a vida da Cooperativa, pretende servir de subsídio a futuros historiadores.

Fosse-me dado o direito de uma análise desses 33 anos que vasculhei, que pesquisei, em que mergulhei, não hesitaria em observar, com honestidade, aquilo que me ficou muito claro. A UNIMED-Piracicaba é devedora a um sonhador utópico e “louco”, que acreditou e realizou a sua utopia: Manoel Gomes Tróia, seu fundador; teve uma adolescência titubeante, quando da transição comandada pelos presidentes Alcides Aldrovandi – de quem a classe médica e Piracicaba são saudosas – e de Moracy Arruda; viveu o ímpeto e a retomada de seu crescimento a partir de Eudes Aquino de Freitas e, finalmente, atingiu a maturidade e o profissionalismo com Paulo Tadeu Falanghe. Até aí, foi a jornada que acompanhei.

O significativo, quando iniciei o projeto de escrever a história da UNIMED- Piracicaba até 2003 – se olharmos sem superstição, mas com respeito à sabedoria dos ancestrais – está no número dos anos de sua existência, àquela época: 33. O da maturidade, o da idade de Cristo, o estágio máximo dos “pedreiros livres”, número cabalístico. Pois, na “kabbalah”, a pessoa ou a instituição que chega aos 33 anos é porque conheceu, mesmo que instintivamente, os 32 caminhos da sabedoria. Nessa mesma sabedoria da ancestralidade, os anciãos ensinavam que o 33 é a “véspera do 34”, tempo do novo ciclo, do novo desafio. Sem ser médico, vi a UNIMED-Piracicaba como uma afilhada que eu tivesse que conhecer melhor, cuidando dela, indo às suas entranhas. Pedi que ela me falasse algo para ouvir o ar de seus pulmões. E ela me respondeu: 33. Cecílio Elias Netto

* Esse prefácio e todo o livro obedecem, rigorosamente, ao que foi escrito e apresentado à diretoria da Unimed imediatamente após o mandato de Paulo Tadeu Falanghe. Os acontecimentos que ocorreram após o término deste trabalho não estão aqui abordados por não ser de responsabilidade do autor estudá-los ou escrevê-los. O autor pede, pois, que esse livro sirva apenas para subsídios dos primórdios e dos primeiros 33 anos dessa história. É a história que eu sei, que pesquisei, que escrevi. Quem puder que conte outra.

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