O sonho de Manoel Gomes Tróia (10)

Vencendo os “mercantilistas”

Em meados da década de 1970, a UNIMED-Piracicaba considerava-se consolidada, ainda que com percalços. O lema de Manoel Gomes Tróia permanecia vivo: “Uma cooperativa de médicos, para médicos, dirigida por médicos.”1 Ao mesmo tempo, a luta contra a medicina de grupo dava sinais de esgotamento. As duas empresas, Servmed e Samep, não resistiam ao crescimento da UNIMED, à sua expansão também em outras importantes cidades. Em 1980, as UNIMEDs, como passaram a ser conhecidas, tinham 30 mil médicos cooperados em todo o Brasil, ou seja, um terço dos médicos em atividade no país. Eram 100 unidades nos mais diversos estados da Federação, atendendo a um universo de cerca de 4 milhões de pessoas.2

Na verdade, as chamadas “empresas mercantilistas” de saúde, quer em nível regional ou nacional, acabaram dando-se conta do posicionamento monolítico das UNIMEDs no Brasil, que repudiavam a chegada de empresas de saúde multinacionais da época. No tempo do “milagre brasileiro”, empresas como Corporation of America-HCA e a American Medical International buscavam abocanhar áreas já abertas por empresas brasileiras, como a Amico e a Pró-Med. Fortalecidas, as UNIMEDs iam rechaçando as investidas das chamadas “mercantilistas”, agora com a vantagem de uma maior conscientização da própria classe médica.

– “A classe médica é extremamente esclarecida e politizada. Mas, também, é uma categoria extremamente individualista.” – explicava Edmundo Castilho, presidente da UNIMED do Brasil, fazendo eco à pregação de Manoel Gomes Tróia, ao saudar o “determinismo com que o cooperativismo médico fora implantado no Brasil.”3

Finalmente, em 1978, Manoel Gomes Tróia consegue formalizar acordo com a Servmed e a Samep, que encerram as suas atividades. Os médicos que pertenciam a seus quadros passam a integrar a UNIMED-Piracicaba, que ainda – e durante toda a administração de Manoel Gomes Tróia – defende o sistema de exclusividade: médicos cooperados não podem prestar serviços a empresas de saúde. Ao mesmo tempo, a sede da cooperativa é transferida para um imóvel mais amplo, onde se instalara a Samep, na rua Morais Barros, 584, de propriedade, então, de Manoel Munhoz.

Nada mais era empecilho para a expansão e crescimento da UNIMED-Piracicaba. Essa convicção pode ser fortalecida pela avaliação que a Caterpillar fez dos serviços que a cooperativa lhe prestava. Atendendo à filosofia da matriz, nos Estados Unidos, a direção da Caterpillar precisava esmerar-se no atendimento social a seus empregados. Desde 1974, firmou um convênio de saúde com a UNIMED, para garantir um plano de saúde que atendesse às seguintes exigências: “livre escolha dos associados, facilidade de atendimentos que deveriam ser feitos também fora do expediente normal e, em sendo necessário, em outras cidades da região, com exames e tratamentos de alta qualidade.” A UNIMED-Piracicaba assegurou esses benefícios, passando a atender, incluindo dependentes, cerca de 5.500 pessoas apenas na Caterpillar. O médico-chefe da multinacional sediada em Piracicaba atestaria, em 1986, a excelência dos serviços e o cumprimento dos compromissos firmados no convênio.4

Então, mais um grande passo – certamente definitivo para a consolidação da Cooperativa – foi dado, já no quinto mandato da diretoria presidida por Manoel Gomes Tróia, em 1979: a aquisição da sede própria.

A “Sede da 15”

Ainda hoje, tanto cooperados como usuários da UNIMED-Piracicaba costumam referir-se à sede da cooperativa como “a sede da 15”. Pode ser um simbolismo, pois a conquista da sede própria foi um sonho que alimentou os primeiros diretores, que permaneceu nas convicções de Manoel Gomes Tróia e que promoveu grandes confusões entre os cooperados. Na realidade, quase todos queriam a sede própria e, no entanto, surgiam receios quando se estava próximo de construí-la ou de adquiri-la. Pois, por outro lado, investir em sede própria seria comprometer a participação nas “sobras líquidas” e poucos eram os que estavam dispostos a isso. Enquanto isso, a diretoria da UNIMED-Piracicaba continuava a trabalhar graciosamente, sem receber salários ou ter vencimentos.

Em 1974, já estava praticamente definida a aquisição de um terreno para a construção da sede própria. Era um imóvel nos altos da Avenida São Paulo, próximo à atual Rodovia Cornélio Pires. Nele, com autorização da assembléia, Manoel Gomes Tróia pretendia construir a sede e preparar caminho para um futuro complexo médico-hospitalar. Mas, na assembléia geral de 19 de fevereiro daquele ano5, entrou em discussão a compra do terreno e a construção da sede, com forte oposição de alguns cooperados. O destino das “sobras líquidas” – outra maneira de se falar em lucros, para evitar a linguagem das “empresas mercantilistas de saúde” – tornara-se a grande discussão. E a assembléia revogou a decisão anterior: estava adiado, ainda outra vez, o sonho da sede própria.

Em 2 maio de 1979, finalmente a UNIMED-Piracicaba pôde falar em sede própria: Manoel Gomes Tróia, sem consultar a assembléia e até com parecer contrário de alguns membros da diretoria6, comprou o primeiro imóvel da cooperativa. Tratava-se da propriedade pertencente ao médico-veterinário Adhemar Spallini e sua mulher, Zaida de Barros Spallini. Por Cr$ 2.400.000,00 (dois milhões e quatrocentos mil cruzeiros), moeda de 1979, a UNIMED adquiria o imóvel do casal, na rua 15 de Novembro, 1429. Assinavam a aquisição Manoel Tróia como presidente e João José Corrêa, como tesoureiro. A transação foi feita pagando-se, no ato, “hum milhão de cruzeiros” e três notas promissórias (duas de 500 e a derradeira, de 400 mil cruzeiros) vencíveis nos meses seguintes. Significativamente, o imóvel confrontava, de um lado, com a casa onde residira o médico Luiz Faria Lemos Pinheiro, que fora companheiro de Manoel Gomes Tróia na diretoria da APM.7

Era a “Sede da 15”. Mas, se foi uma conquista para a UNIMED-Piracicaba e uma vitória de Manoel Gomes Tróia, aquela aquisição daria margem, depois, a questionamentos, como decisão arbitrária da diretoria da UNIMED, que não teria poderes para adquirir bens para a cooperativa sem autorização prévia da assembléia dos cooperados. Na realidade, a autorização seria necessária em caso de alienação de bens, não de compra. Quando, alguns anos depois, nova confusão aconteceu em relação à locação do hospital, Tróia iria usar argumentos fortes para responder às críticas de seus adversários:

– “Quando comprei o imóvel da sede própria, quase ninguém reclamou, mesmo quando se questionou a autorização para fazê-lo. Quando fiz a locação do hospital – e eu tinha poderes para isso – alegaram irregularidades que não existiram.”8

Havia sido plantado, no entanto, um argumento poderoso para o crescimento da oposição a Manoel Gomes Tróia, uma oposição que aumentava à medida em que surgiram novos e jovens médicos e, também, diante do crescimento da cooperativa. Pois Tróia sempre insistiu – e ainda insiste – numa expressão com a qual justifica a firmeza com que agiu na presidência e que seria vista, por alguns, como autoritarismo:

– “O estatuto era minha Bíblia.”9

E bate nessa mesma tecla após trinta anos da histórica noite em que conseguiu, com médicos que nele confiaram, criar e fundar a UNIMED-Piracicaba:

– “Minha Bíblia era o estatuto. Eu não me afastava uma vírgula sequer do

estatuto. (…) Claro que isso passava uma imagem de ditador, mas eu nunca fui um ditador. Se havia um ditador, era o estatuto.”10

Ele próprio reconhece, no entanto, que comprou a sede própria da UNIMED- Piracicaba sem respeitar os estatutos. Se se contradiz, vê sua obra expandindo- se e, de certa forma, consegue justificar-se, como justifica a própria classe médica:

– “Os médicos são líderes em potencial por causa da sua própria profissão. O médico, quando tem um problema para resolver, ele tem que resolvê-lo; elenão pode chamar ninguém, não tem tempo. Sendo assim, é muito difícil liderar 17 anos uma classe desta.”11

Foi um choque de líderes, de personalidades fortes, também de ambições e de expectativas. Francisco Toledo – que tudo acompanhou das entranhas da UNIMED-Piracicaba – formula um juízo que, passados os anos, é o de todos, de amigos e de adversários:

– “Foi tido como arbitrário, até como ditador. Mas nunca jamais se falou

de sua honestidade.”12

NOTAS

 

1 O advogado Antônio Orlando Ometto, na UNIMED desde 1986, confirma a insistência de

Manoel Gomes Tróia em manter esse espírito cooperativista. Entrevista ao autor, 26/09/2003.

2 Entrevista de Manoel Gomes Tróia ao jornal Cooperação. mai/jun 1980.

3 Idem.

4 Assistência Médica. nº 2, fev/1986.

5 Conforme Livro de Atas.

6 A diretoria eleita para o triênio 1978/1980 era composta de: Manoel Gomes Tróia, presidente; Alcides Aldrovandi, 1º vice-presidente; Gil Perches de Menezes, 2º vice-presidente; Alcione Moya Aprilante, 1º secretário; Antônio José de Mores Olivetti, 2º secretário; João José Corrêa, 1º tesoureiro; Carlos Alberto Cury, 2º tesoureiro. Conselho Fiscal: Atílio Garrafoni, Luiz Fernando Penteado de Castro, Marcelo Costa Regis do Amaral; suplentes: Antônio Sérgio Aloisi, Valdir Colucci Machado, Arayr Olair Ferrari. Conselho Técnico: Legardeth Consolmagno, Benito Felipini, Luís Leonardi; suplentes, Carlos Alberto Cury, Milton Brunelli, Irineu Pacheco Bacchi. No final deste livro, a relação completa dos diretores da UNIMED-Piracicaba desde a sua fundação.

7 2º Cartório de Notas, Livro nº 454, folhas nº 49, escritura de compra e venda. Outorgante,

Adhemar Spallini e sua mulher; outorgada, UNIMED de Piracicaba; valor, Cr$ 2.400.000,00.

8 Entrevista de Manoel Gomes Tróia ao autor, 25/07/2003.

9 Idem.

10 Revista UNIMED, UNIMED-Piracicaba, nº 6. Edição Especial, jan/2001.

11 Idem.

12 Entrevista de Francisco Toledo ao autor, 29/08/2003.

Deixe uma resposta