O sonho de Manoel Gomes Tróia (11)

Em 1984, o médico Oswaldo Cambiaghi lança um livro monumental:

“Medicina em Piracicaba” (Contribuição à sua história). Sem que, talvez, pretendesse fazê-lo, Cambiaghi como que narrou uma época em que se encerrava parte dessa história, sem relacionar alguns que, sendo ainda jovens e recentes na profissão, se tornariam responsáveis por acontecimentos importantes e transformadores. Entre estes, o médico Eudes Aquino de Freitas, que chegara a Piracicaba em 1982, e Paulo Tadeu Falanghe, que retornara à sua cidade natal em 1981.

O livro do médico-historiador Oswaldo Cambiaghi não chegou a narrar. Mas, em 1984, já se instalava a crise entre a diretoria da UNIMED-Piracicaba, presidida por Manoel Gomes Tróia, e médicos mais jovens, que não haviam acompanhado toda a luta inicial e que propugnavam por mudanças e transformações.

A UNIMED, no Brasil, tornara-se, então, uma força poderosa. Primeiro, criaram-se Federações da UNIMED em todo o País. Desde 1975, surgira a Confederação Nacional, a UNIMED do Brasil.1 Por outro lado, o número de médicos, saídos das faculdades, revelava um inchaço preocupante: o Brasil, entre 1808 – quando se criou o curso médico-cirúrgico na Bahia – e 1965, criara apenas 40 escolas de medicina; em 1979, chegara a 72 cursos, sendo que 53,3% deles em instituições particulares.2

A medicina não era mais apenas um sacerdócio. Ao sagrado, juntara-se o profano. A convicção do cooperativismo médico, no entanto, já se consolidara. E fortalecia-se ainda mais com o “caos da Previdência Social”, que se acentuara com o INAMPS (Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social), que substituíra o INPS. Na década de 70, a intervenção estatal na Saúde brasileira fora marcante, ao mesmo tempo que se fortaleceram as empresas particulares. Foi o que se chamou de confronto entre “concentração do poder de decisão dos destinos da política de saúde nas mãos de uma grande organização e de suas coalizões dirigentes (INAMPS) e o fenômeno de privatização da política social em saúde, entendido como a maximização dos interesses de um complexo empresarial prestador de serviços de saúde e produtor de insumos (medicamentos e equipamentos hospitalares) utilizados por esses serviços.”3 Crescia o poder das empresas particulares, enquanto o INAMPS revelava decadência irreversível, mesmo que concentrasse um percentual expressivo dos investimentos de saúde em estados como São Paulo, onde respondia por 67,9% dos programas em atividade.4 Chegava-se quase ao final do ciclo militar no Brasil.

Em 1982, a APM-Piracicaba realizou importante encontro para, de maneira mais enfática, insistir no cooperativismo médico. Sob a presidência do médico João Carlos Sajovic Forastieri, o encontro deixava claro que as UNIMEDs e as associações de medicina estavam unidas. Forastieri proclamava “o caos da assistência médica brasileira, diante do desastre causado pela insolvência da Previdência Social”, também denunciando aquilo que Tróia fazia há cerca de l5 anos: “a medicina de grupo visa o lucro em cima da doença e esse princípio é fundamentalmente anti-ético”. Uma das propostas do encontro era para, fortalecendo-se as UNIMEDs, fortalecer o cooperativismo médico.

O presidente da APM, Nelson Proença, batia na mesma tecla: “A medicina de grupo não tem a menor preocupação em oferecer a melhor assistência médica.” Presente ao encontro, Tróia sentia sua velha tese ser fortalecida, fortalecendo os oradores: “o médico tem que lutar por sua dignidade profissional e para que o doente receba um serviço de alta qualidade.”5 Na realidade, como dirigente experimentado e vivido profissional, Manoel Gomes Tróia já constatara que as estruturas brasileiras atingiam a classe médica em todos os sentidos: nos cursos deficientes, com profissionais perplexos e mal remunerados. Médicos começavam a viver, mais do que antes, uma árdua luta pela sobrevivência pessoal e de seus familiares.

A metralhadora giratória de Manoel Gomes Tróia passaria a voltar-se, também, contra o excesso de escolas de medicina e o baixo nível de ensino de algumas delas. Esse protesto passou a ser parte de seu discurso ao longo dos anos:

– “O Brasil produz mais médicos do que é necessário. Estes, por sua vez, se concentram nas cidades de grande e médio porte, principalmente na região Sudeste do país. Isso determina uma queda considerável nos salários, levando médicos a acumular três ou quatro empregos.”

E concluía, ainda conclui:

– “As escolas de medicina de baixo padrão deveriam ser fechadas e as que oferecem um ensino melhor deveriam receber mais recursos.”6

O problema já se refletia em Piracicaba. Manoel Gomes Tróia não percebeu que, enquanto defendia a classe médica como um todo, desagradava jovens profissionais, que estavam entre aqueles que também queriam mudanças. Em 1984, reelege-se, tendo Alcides Aldrovandi como seu vice-presidente.

Jovens médicos começam a fazer parte da diretoria, dos conselhos, como Dalton José Balloni, Marcelo Costa Régis do Amaral. Os primeiros sinais de oposição surgem e são detectados pelos velhos companheiros de Tróia na diretoria. (Na foto, a diretoria composta por Alcides Aldrovandi,Moracy Arruda, Tróia, Eudes Aquino e Edson Angeli.) Francisco de Toledo não hesita em, tantos anos depois, localizar os focos de tensão e de oposição:

– “Estavam na Santa Casa de Misericórdia, no Pronto Socorro Infantil, sendo expressivo o descontentamento de médicos como Walter Calil Chaim,

Milton Brunelli, Jacob Bergamin, Moracy Souza de Arruda Jr., Bernardo Aguiar Jordão, Alcione Moya Aprilante.”7

Para Tróia, a oposição vinha de grupos de especialidades e um dos principais líderes era o médico recém-chegado – “nordestino de olhos azuis e barbudo”, como ainda fala Tróia – Eudes de Freitas Aquino. E este manifesta o que ele e médicos oposicionistas pensavam da administração de Tróia naqueles dias:

– “Era um homem de muita visão, mas já estava há muito tempo no cargo, perdia a capacidade de diálogo e, também, os médicos antigos se sentiam prejudicados com os convênios que celebrara entre UNIMED e os sindicatos.”

E confirma:

– “Entrei no meio do furacão. Fui procurado por médicos que queriam sangue novo. Tróia era um líder mas não admitia mudanças. Apoiei mas não dei a cara para bater.”8

Já estava em jogo a luta entre a unimilitância, defendida ardorosamente por Tróia, e a plurimilitância, pretendida por Eudes de Freitas Aquino. Desde sua chegada a Piracicaba, Eudes de Freitas Aquino esbarrara na firme disposição de Tróia em manter o trabalho médico exclusivo, apoiado em estatutos da UNIMED.

– “Eudes propunha trabalhar ao mesmo tempo para a UNIMED e outros convênios, como o Hospital dos Plantadores de Cana, mas isso não era permitido por estatutos e nem fazia parte da filosofia da UNIMED.”, diz Tróia.9

E, para manter a firmeza de sua decisão, apoiava-se, também, em consulta feita ao Incra, quando da sua decisão de excluir, da UNIMED, cooperados que trabalhassem para outras instituições. O pronunciamento do coordenador regional, Paulo Penna de Mendonça avalizara a decisão e, ao mesmo tempo, garantia-lhe a defesa da tese de unimilitância: “(…) não podem ser cooperados os agentes de comércio e empresários que operem no mesmo campo econômico da sociedade.”10

Na verdade, tratava-se de colocar obstáculos à ação do médico Alcione Moya Aprilante que, além de ser proprietário do Laboratório Prevlab, fora eleito presidente da APM-Piracicaba, tornando-se intransigente defensor da aplicação da tabela da ABM(Associação Brasileira de Medicina) para pagamento dos médicos.

– “Foi a primeira vez que a APM-Piracicaba entrou em confronto com a UNIMED local. Para nós, a UNIMED deixava de cumprir a finalidade de cuidar do mercado de trabalho do médico.”11

Era apenas um dos muitos pontos de divergência. Sem composições, a ruptura era inevitável. A crise acentuou-se em 1985.

Notas

1 MOURA, João Baptista do Amaral & outros. op.cit.

2 Idem

3 Cadernos FUNDAP (Fundação do Desenvolvimento Administrativo), ano 3, nº 7, novembro de 1983.

4 Idem.

5 Jornal de Piracicaba, 30/03/1982.

6 Várias entrevistas de Manoel Gomes Tróia ao autor e ao Jornal de Piracicaba, l6/10/1988.

7 Entrevista de Francisco Toledo ao autor, 29/08/2002.

8 Entrevista de Eudes de Freitas Aquino ao autor, 17/09/2002.

9 Entrevista de Manoel Gomes Tróia ao autor, 6/05/2003.

10 Ofício assinado pelo assistente da Coordenação do Incra/São Paulo, Laerte Paulo Fávero, em 30/10/1984.

 

11 Entrevista de Alcione Moya Aprilante ao autor, em 24/06/2003.

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