O sonho de Manoel Gomes Tróia (13)

Mexendo no vespeiro

Reeleito, mas desgastado, sabendo das dificuldades que haveria de encontrar pela frente – e tendo, ainda, Alcides Aldrovandi como vice-presidente – Manoel Gomes Tróia passou a ter, como meta, a construção do hospital da UNIMED-Piracicaba. A UNIMED-Campinas seria a primeira a ter hospital próprio, quando o seu presidente, o médico Jeber Juabre, pretendeu assumir o Hospital da empresa Bosch. Foi o próprio Manoel Gomes Tróia quem o estimulou a tomar a iniciativa, que apresentava riscos e desafios ainda maiores. Juabre tinha consciência de que, assumindo o hospital, “iria contra o interesse de vários grupos. Seria como mexer num vespeiro”. E, por isso, poderia “ser queimado”.

Tróia defendeu a tese de as UNIMEDs terem seu próprio hospital sem saber que, pouco depois, aconteceria o mesmo com ele:

– “Eu mexi no vespeiro e me queimei.”1

Era o sonho do tripé: usuário, cooperado, hospital. O primeiro hospital surgiria em Brasília; o da UNIMED-Piracicaba, seria o segundo.

Em 1985, no Brasil, 78% dos estabelecimentos de saúde com internação estavam em mãos da rede privada. No total, eram 3,9 leitos disponíveis para cada mil habitantes, uma concentração bem maior no Sudeste, em especial no Rio de Janeiro, onde a proporção chegava a 7,4 leitos/mil habitantes. Naquele ano, as estatísticas registraram 125 internações por mil habitantes, dos quais menos de 20% haviam ocorrido no setor público. O IBGE indicava, em Piracicaba, a existência de 1.284 leitos, para uma população estimada em 280.000 habitantes.2

Manoel Gomes Tróia admite, passados tantos anos, que, talvez, não ousasse construir um hospital para a UNIMED-Piracicaba, diante do clima que se ia tornando insustentável, de contestações que começavam a surgir. O seu estilo individualista de administrar criava problemas. Construir o Hospital da UNIMED-Piracicaba seria, realmente, “o vespeiro”. Não contava com apoio da diretoria da própria Cooperativa, toda ela a favor, pelo menos teoricamente, de a Cooperativa ter hospital próprio, mas considerando inviáveis algumas das alternativas surgidas. Por outro lado, havia forte reação contrária da Santa Casa de Misericórdia, que, ainda, era o centro do poder médico em Piracicaba e na região. E, também, a pressão contrária dos demais hospitais existentes.

No entanto, um desses hospitais estava em situação crítica: a Clínica Santa Mônica, arrendada ao antigo Hospital Piracicaba, do médico Nelson Gimenez. A Clínica – que, anteriormente, fora locada pelo médico Adib Cury, para atendimento aos segurados do INPS – estava inteiramente desprestigiada. Tinha sido um sonho de um grupo de médicos que, em dezembro de 1981, haviam criado o Grupo Santa Mônica. Em sua presidência, estava Sidney de Souza e, no hospital, como diretor clínico, Renato Françoso Filho. Por quatro anos, tudo havia sido feito para desenvolver o projeto. Mas, em 1986, aqueles 45 médicos, que compunham o grupo, já não sabiam mais o quê e como fazer. Era um grande projeto que chegava ao fim:

– “Era uma proposta e um tempo que tiveram grande importância no sentido ideológico”, diz Renato Françoso. 3

Instalações precárias, dívidas, falta de recursos, o hospital não tinha condições de atender à população e, ao mesmo tempo, deixaria sem alternativas a numerosa equipe médica que nele trabalhava. O golpe mortal fora dado pela mudança de política do INPS, que impusera limites de internação. Desde o início das atividades, os médicos haviam mantido o hospital cedendo 10% de seus vencimentos, mas a Clínica chegara a seu limite de resistência. A alternativa era simples: fechar ou vender, além da hipótese, não desejada pelos médicos, de criar medicina de grupo. Um dos prováveis interessados seria o CLAM, empresa de medicina de grupo de propriedade do homem de televisão, Silvio Santos.

Foi quando – cerca de dois meses após a tumultuada eleição de março – os médicos Renato Françoso Filho, Sidney Souza Almeida e Antônio Geraldo Buck procuraram Manoel Gomes Tróia. O intuito: entregar a Clínica Piracicaba para a UNIMED. O verbo era esse mesmo, “entregar”, de portas fechadas, com créditos e débitos, transferindo o contrato que havia com o proprietário do hospital, Nelson Gimenez. Na realidade, tratava-se de um sublocação e, pelo entendimento entre a Clínica Santa Mônica e a UNIMED, a Cooperativa “estava livre de ônus anteriores desta empresa (Santa Mônica), com relação a todos os encargos, sejam da área trabalhista, fiscal, previdenciária, comercial ou quaisquer outros débitos junto a terceiros, ou seja, com entidades particulares ou governamentais de âmbito municipal, estadual ou federal”.4

– “Eles estavam tímidos, talvez não acreditando que eu pudesse aceitar aquela proposta. Mas achei que, apesar de todos os problemas e dificuldades, ela era vantajosa para a UNIMED”, fala Tróia.5

Se ele queria vespeiro, tinha encontrado. Renato Françoso comentou:

– “Só mesmo um espanhol cabeçudo…”

E Tróia não permitiu que ele continuasse a frase:

– “…em espanhol, fala-se ‘testando’…”

Foi a gota d’água. Levada a questão ao Conselho de Administração, não houve um só voto, na diretoria, a favor da negociação com o hospital. Para todos, soava como aventura. De um lado, nada indicava houvesse possibilidade de recuperação da Clínica, além do mau conceito que, por longos anos, o hospital acumulara; de outro, a diretoria da Cooperativa era formada por médicos vinculados à Santa Casa de Misericórdia, sendo possível prever grandes confusões. Mas Tróia fez prevalecer sua decisão, alegando que os estatutos eram omissos e que ele, como presidente da Cooperativa, poderia, independentemente de aprovação da diretoria, fazer contratos de locação. Assim, ele “alugou” um hospital. A UNIMED teria o seu hospital. Que, na verdade, eram quase ruínas de uma clínica.

O próprio Manoel Gomes Tróia descreve o que encontrou:

– “Precisei trocar duas mil telhas, que estavam quebradas. O sistema de esgoto não funcionava e, quando se quebravam as manilhas para reformas, encontramos até um feto dentro delas. A rouparia estava arrebentada, roupas rasgadas, lençóis. Não havia material cirúrgico e medicamentos. Soube-se, depois, que até vendedores de produtos farmacêuticos deixavam suas sacolas de amostras grátis para atender os doentes. Era o caos. Reformei tudo.”

No entanto, é exagero falar em reforma total. Para Renato Françoso Filho, a mudança, inicialmente, “foi de ordem estética”, cuidando de investimentos para equipar o centro cirúrgico6. Francisco Toledo lembra-se que a primeira providência, tão logo se fez o acordo com a Clínica, foi fechá-la, aguardando que se resolvessem os problemas com os funcionários.

– “Durante três meses, ficou parada, enquanto cuidávamos de mudar a pintura, de melhorar a aparência”, recorda-se.7 O fato, porém, é que Manoel Gomes Tróia conseguira, enfim, formar o tripé: usuário, médico, hospital.

Enfim, a UNIMED-Piracicaba tinha o seu hospital, a segunda cooperativa médica do Brasil a tê-lo. Mas Tróia perdeu o poder. Surgira um outro grande motivo para dar forças aos que lhe faziam oposição.

– “Acontece sempre: a criatura devora o seu criador”, diz Manoel Gomes Tróia.8

Notas

1 Entrevista de Manoel Gomes Tróia ao Jornal de Piracicaba (Suplemento Presença), 31/03/1995, e ao autor, 30/07/2002.

2 IBGE. Saúde: indicadores sociais. Rio de Janeiro, 1992.

3 Entrevista de Renato Françoso Filho ao autor, 15/05/2003.

4 Documento assinado por Sidney de Souza Almeida (Presidente), Augusto Muzilli Jr. (Diretor Financeiro), Renato Françoso Filho (Diretor Clínico), diretores da Clínica Santa Mônica S/C Ltda., em 3/11/1986, ratificando contrato anterior, em posse do autor.

5 Entrevista de Manoel Gomes Tróia ao autor, 6/05/2003.

6 Entrevista de Renato Françoso Filho ao autor, 15/05/2003.

7 Entrevista de Francisco Toledo ao autor, 15/06/2003.

8 Entrevista de Manoel Gomes Trória ao autor, 6/05/2003.

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