O sonho de Manoel Gomes Tróia (16)
Tempos de transição
O mandato de Alcides Aldrovandi foi cumprido até 31 de março de 1988. Foi, literalmente, um mandato-tampão. Pouco havia a fazer senão dar seqüência ao que já estava em andamento e administrar crises. Confirma-o Francisco Toledo:
– “Não havia muito a fazer. Ele ficou apenas um ano e para completar o mandato de Tróia.”
E acentua Antônio Orlando Ometto:
– “Tem que se reconhecer ao dr. Alcides o grande papel de pacificador da classe médica naqueles meses. Ele fez a transição e conseguiu a pacificação.”1
Na realidade, a transição iniciada fora dolorosa também em outro aspecto: o sócio-econômico-político do Brasil. A “Nova República”, sonhada após a queda dos governos militares, redundara num grande caos nacional. O governo de José Sarney estava de tal forma desmoralizado que o presidente da República não podia sair às ruas, vaiado pelo povo. De Alagoas, um jovem governador, com ares messiânicos, falava em “caça aos marajás”, batendo na tecla da moralidade e apresentando-se como inimigo número 1 da corrupção, Fernando Collor de Mello. O Brasil mantinha-se como que paralisado, na expectativa, ora aguardando o caos final, ora movido por esperanças.
Na UNIMED-Piracicaba, Alcides Aldrovandi apenas cumpriu o mandato, enquanto os médicos da antiga oposição se organizavam para eleger um presidente afinado com o modelo que pretendiam fosse oposto ao de Manoel Gomes Tróia. Mas havia obstáculos. Aquela antiga oposição sabia o que não queria, mas não conseguia explicitar o que queria e com quem. A saída de Manoel Gomes Tróia era vista como uma vitória; a administração de Alcides Aldrovandi apenas como uma transição – quem seria o candidato?
O vácuo e Moracy
Alcione Moya Aprilante garante que nunca pretendeu ser candidato à presidência, mesmo por força de suas atividades e compromissos com o laboratório de sua propriedade, o Prevlab. Diz:
– “O Eudes (de Freitas Aquino) já tinha entrado na confusão, mas não queria ser candidato. Havia um vácuo. Então, indiquei o Moracy…”2
Um dos líderes do movimento, Eudes de Freitas Aquino, tido como um dos prováveis candidatos, diz ter sido, realmente, procurado por médicos amigos, entre os quais Luiz de Castro, Jacob Bergamin, Bernardo Jordão, Ludmar Machado, que insistiam em sua candidatura. Testemunha:
– “Expliquei que não poderia aceitar, pois não tinha experiência administrativa, nem de cooperativismo. Não que eu não quisesse, mas porque teria que me preparar.”3
Eudes lembra-se de um churrasco informal na residência do médico e amigo Bernardo Aguiar Jordão, presente também Moracy Souza de Arruda Jr. Recusando-se a disputar a presidência da UNIMED-Piracicaba, sugeriu que o candidato fosse Jordão. Este, também, não aceitou. Foi quando, segundo Eudes de Freitas Aquino, a indicação recaiu sobre Moracy.
– “Eu topo”, disse Moracy, segundo Eudes.4
E ficou acertado, numa reunião de médicos na APM, que Moracy seria o candidato e que Eudes, por indicação de Ludmar Navajas Machado, seria ocompanheiro de chapa, na vice-presidência.
No dia 31 de março de 1988, a assembléia dos cooperados da UNIMED- Piracicaba elege Moracy de Souza Arruda Jr. como terceiro presidente da entidade. Na vice-presidência, está, realmente, Eudes de Freitas Aquino. Só que aquela, que deveria ter sido uma eleição tranqüila, foi antecedida de outras tensões e conflitos. A candidatura de Moracy Arruda, em vez de somar, começava a dividir, até mesmo pelo temperamento do candidato. Moracy não se cansava de criticar a aquisição do hospital e as condições em que ainda se encontrava. Ia a detalhes: lençóis, pintura, faxina, etc.
– “Ele resistia ao hospital”, diz Francisco Toledo.5
Uma outra crise aproximou-se do próprio estopim quando, ao compor a chapa, viu-se que o nome de Eudes de Freitas Aquino não constava como candidato à vice-presidência. O rompimento esteve iminente e a crise apenas foi debelada quando Ludmar Navajas Machado cobrou a manutenção do acordo. No conselho de Administração, Eudes de Freitas Aquino foi vice-presidente e Alcides Aldrovandi permaneceu na diretoria, como 1º tesoureiro.
– “Nos quatro anos da diretoria presidida pelo Moracy, preparei-me para presidir a UNIMED-Piracicaba”, diz Eudes Aquino. E os cursos que fez, na área de cooperativismo também, o confirmam.
Moracy em tempos confusos
Ao assumir a presidência da UNIMED-Piracicaba, Moracy Souza de Arruda Jr. era de uma nova geração de médicos instalados na cidade no início da década de 1980. Sobrinho de conhecido médico da cidade, Caiuby de Souza Arruda, o jovem Moracy chegou a Piracicaba em novembro de 1982, exercendo a mesma especialidade que o tio, a ortopedia. Iniciou a sua atividade já fazendo parte do corpo clínico da Santa Casa de Misericórdia.
Não há muitos registros documentais sobre a administração da diretoria presidida por Moracy Souza de Arruda Jr. Foram registradas dificuldades inclusive para colher depoimentos do médico. No entanto, a sucinta análise de Antônio Orlando Ometto parece definir o período:
– “Havia grandes dificuldades no País. O dr. Moracy deu estabilidade às crises financeiras, na turbulência dos planos econômicos dos governos da época.”
Era a transição, havia turbulências, surgira um novo tempo.
A Piracicaba de 1988 iria ver a chegada do PT (Partido dos Trabalhadores) ao poder, através do então deputado José Machado. Era uma experiência inteiramente nova. O prefeito Adilson Benedicto Maluf deixava o governo e José Machado, já no primeiro ano de administração, diria, ocupando a nova sede do governo, o Centro Cívico, no Parque da Rua do Porto:
– “Encontramos as máquinas da Prefeitura sucateadas e em número insuficiente para dar conta do serviço da Prefeitura. O Semae (Serviço Municipal de Águas e Esgoto) estava praticamente falido, os salários do funcionalismo arrochados.”6
No Brasil, no início de 1988, o presidente José Sarney, através do ministro Mailson da Nóbrega, trouxe um outro plano econômico ao país, criando o cruzado novo, impondo novo congelamento de preços, acabando com a correção monetária e anunciando a privatização de empresas estatais, além de cortes nos gastos públicos. A moratória externa foi suspensa em janeiro de 1988 e, em setembro, o país assinou um amplo acordo de reescalonamento da dívida com banqueiros internacionais, envolvendo o refinanciamento de US$ 60,9 bilhões da dívida externa pelo período de 20 anos. Mas, buscando de forma drástica um superávit comercial, que chegou a 6,8% do PIB naquele ano, a aceleração inflacionária ficou incontrolável. A inflação somava, em 12 meses, 684,6%.7
A Assembléia Nacional Constituinte concluíra seus trabalhos apresentando uma nova Constituição com 245 artigos permanentes e 70 nas disposições transitórias. Denominada Constituição cidadã, promulgada em 1988, estabeleceu a independência entre os três poderes, eleições diretas com dois turnos para presidência, governos estaduais e prefeituras com mais de 200 mil eleitores; limitou a jornada de trabalho para 44 horas semanais, estipulou o seguro desemprego, ampliou a licença maternidade para 120 dias, proibiu a ingerência do Estado nos sindicatos, estabeleceu uma multa de 40% sobre o valor total do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) nas dispensas sem justa causa. Ou seja, garantiu direitos aos trabalhadores, alterando também o ambiente para sua manifestação e organização e seu poder de pressão. O próprio Sarney admitiria que, durante seu período de presidência enfrentou cerca de 12 mil greves, comentando que “tira-se a tampa da panela e todo mundo querendo que do dia para a noite tudo fosse feito… as pressões foram muito maiores daquilo que se poderia fazer. E a transição se deu sem regressão.”8
Ainda em seu governo, Sarney anunciaria, em janeiro de 1989, o chamado Plano Verão, quase uma reedição Plano Cruzado: houve congelamento de preços e da taxa de câmbio – após uma desvalorização de 17% do cruzado novo em relação ao dólar – , a recomposição salarial pela média do salário real dos últimos 12 meses. As taxas de juros elevaram-se e o governo manifestou a promessa de não gastar mais do que arrecadasse. O novo fracasso significaria, na prática, o final do governo já em junho de 1989, embora ainda lhe restasse 9 meses de mandato, na opinião do economista Alckmin Moura, que elenca os motivos: a taxa de inflação dobrou no período de 30 dias, as desvalorizações diárias do cruzado novo em relação ao dólar foram restabelecidas, houve a suspensão do pagamento de juros aos bancos privados internacionais. Um pacto, proposto a trabalhadores, empresários e governo para que se pudesse controlar os preços, fracassou. E o ano se encerrou com uma inflação diária de 2%, indicando que o nível geral dos preços dobrava a cada 35 dias.
A administração
Nesse estado de coisas, Moracy Arruda presidiu a UNIMED-Piracicaba. Na entrevista ao jornalista Nelson Bertolini, Moracy Arruda declarou:
– “(…) Quando assumi a presidência, o Hospital UNIMED era um hospital que tinha um índice de ocupação muito baixo, um conceito perante a população que não era muito favorável e era extremamente deficitário justamente devido ao índice de ocupação ser muito baixo. Grande parte da implantação do Hospital UNIMED foi feita na nossa gestão. Foram feitas algumas adequações na área física, foi reformada a área da maternidade, foi criado um mini-berçário, foram implantados, pela primeira vez na Cooperativa, o plantonista, o berçarista que ficava de plantão no hospital. Esse mesmo berçarista passou a fazer a recepção das crianças que nasciam na maternidade do hospital, porque até essa época não havia em Piracicaba o neonatologista.”
Ainda, conforme aquele depoimento, “foram feitas adaptações na enfermaria, melhorado o padrão de acomodação, oferecendo-se algumas vantagens ao usuário, para que ele passasse a fazer uso do Hospital UNIMED. Foi investido na melhoria técnica do hospital, no pessoal, através de cursos, de reciclagens. Quando completamos o segundo mandato na diretoria, o Hospital UNIMED era auto-suficiente. Era inclusive superavitário. Era uma receita pequena, mas que gerava superávit que era, periodicamente, reinvestido nas melhorias do hospital.”
A maternidade em alta
Segundo, ainda, depoimento de Moracy Arruda, foi a rescisão de contrato da Clínica Amalfi com a Cooperativa que permitiu houvesse um grande impulso na Maternidade do Hospital da UNIMED-Piracicaba. Narra:
– “Os colegas, principalmente os ginecologistas e obstetras da Clínica
Amalfi, passaram a fazer os seus atendimentos de Ginecologia e Obstetrícia dos usuários da Cooperativa no Hospital UNIMED. A justificativa para a rescisão do contrato, entre a Clínica Amalfi e a Cooperativa, é que havia divergências de custos levantados pela auditoria quanto aos valores que a Cooperativa praticavae aqueles que a Clínica Amalfi pleiteava.”
Segundo ele, a ruptura ter-se-ia dado ainda no mandato de Alcides Aldrovandi:
– “Até para se fazer justiça, na época, em homenagem ao dr. Alcides, é importantíssimo que se diga que o dr. Alcides Aldrovandi fez o possível e o impossível para que a situação não chegasse ao ponto da ruptura.”
E enfatiza:- “O dr. Alcides ficou muito chateado porque, numa tarde, ele se reuniu com a diretoria da Clínica Amalfi e deixou acertado verbalmente um acordo, até certo ponto tranqüilo, possibilitando que os colegas que trabalhavam lá continuassem atendendo seus pacientes na Clínica e, no dia seguinte, foi pego de surpresa, quando a Cooperativa recebeu a carta de rescisão por parte da Clínica Amalfi, carta que deve estar nos arquivos da Cooperativa.”
A informação é importante para se avaliar o fortalecimento do Hospital UNIMED à época. Mas a versão do médico Matheus Amalfi, fundador e presidente da Clínica Amalfi, é diferente. Ofício dos arquivos da Clínica Amalfi dá conta de que a rescisão contratual foi assinada por Matheus Amalfi, no dia 5 de julho de 1990, quando Alcides Aldrovandi já participava da diretoria eleita para o segundo mandato do Conselho presidido por Moracy Arruda. Outro documento informa que, em agosto de 1989, no primeiro mandato de Moracy Arruda, a Clínica Amalfi solicitara melhorias financeiras e alterações na forma de pagamento, justificando o pleito em virtude da espiral inflacionária, elevação de custos, toda a desordem econômica que dominara o Brasil nos últimos anos. Nova correspondência da Clínica Amalfi, em abril de 1990 – no início, também, do segundo mandato de Moracy Arruda – retoma o assunto, insistindo na revisão de custos.
Diz Matheus Amalfi:
– “Minhas relações com Alcides Aldrovandi sempre foram de grande cordialidade e cavalheirismo. Tratávamos das relações entre Clínica Amalfi e UNIMED de maneira serena. Na administração dele, não houve atritos, nem dificuldades. Também não houve qualquer acordo verbal. A rescisão se deu quando o dr. Moracy presidia a UNIMED. Não houve mais diálogo, as grosserias foram além do suportável e não me sobrou alternativa, até com prejuízo para a própria Clínica, senão romper.”10
Presente à reunião que antecedeu a rescisão, o médico Alcione Moya Aprilante confirma os acontecimentos narrados por Matheus Amalfi e também a data em que ocorreram.
– “Apesar do rompimento e dos incidentes, o Hospital UNIMED, que precisava viabilizar-se, acabou, realmente, fortalecendo-se com aquela crise”, fala.11
UNIMED e Clínica Amalfi renovariam o convênio apenas na administração de Eudes de Freitas Aquino.
O segundo mandato
O segundo mandato de Moracy Arruda decorreu da eleição de 27 de março de 1990, tendo Eudes de Freitas Aquino ainda na vice-presidência, em chapa única. Foi na administração de Moracy Arruda que se iniciou o processo de informatização da Cooperativa. Eudes de Freitas Aquino, já se sentindo preparado para assumir a presidência da UNIMED-Piracicaba, candidatou-se e foi eleito, tendo José Fernando Fanckin como vice-presidente da diretoria, em 31 de março de 1992.
Eudes diria, alguns anos depois:
– “Eu glamourizei a UNIMED-Piracicaba.”12
Notas
1 Entrevista de Antônio Orlando Ometto ao autor, 26/09/2003.
2 Entrevista de Alcione Moya Aprilante ao autor, 24/06/2003.
3 Entrevista de Eudes de Freitas Aquino ao autor, 17/09/2003.
4 Idem.
5 Entrevista de Francisco Toledo ao autor, 29/08/2002.
6 ELIAS NETTO, op.cit.
7 LAMOUNIER, Bolívar. De Geisel a Collor. São Paulo: IDESP, 1990. p.53.
8 DINES, Alberto e outros. Histórias do poder. São Paulo: Editora 34, 2000. Depoimento de José Sarney, p. 289.
9 Documentação colocada à disposição do autor por Roberto Amalfi, em 29/07/2003.
10 Entrevista de Matheus Amalfi ao autor, 30/07/2003.
11 Entrevista de Alcione Moya Aprilante ao autor, 31/07/2003.
12 Entrevista de Eudes de Freitas Aquino ao autor, 17/09/2002.