O sonho de Manoel Gomes Tróia (2)

Médicos de antigamente

Em 1940 – quando a II Guerra Mundial abala as estruturas mundiais – Piracicaba contava, segundo o IBGE, 76.416 habitantes. Era, ainda, uma cidade de economia e população predominantemente rurais. Quase 80% da população moravam em sítios e fazendas da zona rural, nos distritos. E havia cerca de 20 mil analfabetos, entre homens e mulheres. Cidade rica num mundo em crise, Piracicaba vivia suas contradições econômicas, com uma população de empregados que conhecia direitos trabalhistas recém concedidos pela ditadura de Getúlio Vargas, o “pai dos pobres”, diante de estruturas ainda mais perversas da República Velha. Havia preocupações com educação e saúde, mas incipientes. E os recursos também eram escassos.

Na Prefeitura, a indicação de um descendente de italianos – o engenheiro José Vizioli, em 1942 – rompera um ciclo de brasileiros “da velha cepa”, permitindo novos ares aos migrantes que, a pouco e pouco, iam ascendendo na escala social. Eram os Ometto, os Dedini, os Morganti, sírios e libaneses, espanhóis. Mas a guerra levantava suspeitas e aumentava os preconceitos: espanhóis, italianos, alemães e japoneses eram alvos preferenciais dos ódios despertados. Tudo, pois, se tornava mais difícil. Mas Piracicaba sempre soube ser generosa e o menino Manoel conseguiu entender que, mesmo entre conflitos e ódios, há uma vocação humana para a fraternidade. No Colégio Piracicabano, o menino Manoel – que perdera o ânimo da vida, recusando-se a estudar – conheceu essa Piracicaba generosa através de figuras de mestres e educadores como Affonso Romano Filho, Josaphat de Araújo Lopes. E, em 1942, quando cai vitimado pela pneumonia, é um médico, dr. Godofredo Bulhões, quem lhe salva a vida, personalidade que o marca de forma fascinante. E é no dr. Bulhões e na existência como uma dádiva, que o adolescente Manoel pensa quando, aos 14 anos, se torna motorista de caminhão e consegue socorrer e salvar, sem qualquer experiência anterior, um homem que tivera três dedos da mão esmagados. Decide estudar. E quer ser o primeiro. Em tudo. A obstinação já o dominara. Começa nascer um sonho: a Medicina.

Ora, há uma história comovente e heróica de médicos em Piracicaba. O adolescente Manoel Gomes Tróia ouve ecos dela. São homens e mulheres que escreveram capítulos especiais de lutas e de doações, vividos a partir dos “curiosos”, dos “curandeiros”, dos boticários e seus aprendizes, dos “físicos-barbeiros”. A população, desde os tempos dos escravos, cultua preitos de gratidão a beneméritos que “pensavam feridas” – como se dizia para quem tratava delas -, que aplicavam “ventosas e sanguessugas”. Eram conhecidos como os “sangradores”, os que faziam sangrias, cujo conhecimento derivava, apenas, das experiências colhidas junto a indígenas e negros. Substituíam, de alguma forma, os pajés com suas ervas e orações. Apenas com a chegada dos jesuítas, organizaram-se as primeiras e precárias boticas. Em Piracicaba, o primeiro médico de que se tem notícia – presumivelmente, um “cirurgião-barbeiro” – é um certo “cirurgião Fraga”, citado em ata da Câmara Municipal em 1826. Em 1831, na então Vila Nova da Constituição, nos grandes esforços para a inoculação da vacina anti-variólica, sabe- se da existência de um cirurgião-mor, José Fernandes Viana. E é apenas em 1838 que se faz referência ao primeiro médico que, presumivelmente, teria fixado residência em Piracicaba, José Baptista de Luné. Mas é uma mulher, entre curandeira e conhecedora de rudimentos de alopatia, que permanece nas lembranças, no imaginário e até mesmo na religiosidade popular, Rosa de Jesus, que cuidava dos mais pobrezinhos e dos negros.1 Rosa de Jesus e as parteiras representavam, para a população feminina, de uma certa maneira, como aquilo que as “feiticeiras” significavam na Idade Média, quando nenhum médico ou “físico-barbeiro” podia cuidar de mulher no tocante à menstruação, gravidez e parto. A Medicina entra na vida de Manoel Gomes Tróia num tempo em que os médicos de Piracicaba se organizam de forma ainda mais decidida em torno da Santa Casa de Misericórdia. Ainda sob a liderança do médico Coriolano Ferraz do Amaral – um líder em todas as áreas da vida piracicabana – a classe médica uniu-se para promover reformas e ampliações no hospital mobilizando áreas empresariais onde despontava a figura de Mário Dedini, já um benemérito em plena II Guerra Mundial. O surgimento do Rotary Club, em 1941, dinamiza a elite cultural, pensante e econômica quanto aos serviços à população. Rotary Club, ESALQ, a imprensa sensibilizam-se diante das campanhas da Santa Casa: o novo pavilhão, lavanderia, serviço médico-hospitalar, enfermarias de mulheres, homens e crianças. Um dos beneméritos da ESALQ, Philippe Westin Cabral de Vasconcellos, projeta e supervisiona o novo e artístico parque do hospital.2 Adoentado, Coriolano Ferraz do Amaral deixa, em 1946, o cargo de Provedor da Santa Casa, sendo substituído pelo médico e seu genro, Nelson Meirelles. Ainda que num círculo restrito, está, porém, formada uma plêiade de médicos com ampla visão social da Medicina, olhos voltados para os mais necessitados: Tito Gomes de Moraes, Zeferino e Irineu Bacchi, Luiz Gonzaga de Campos Toledo (dr. Lula), Francisco Alves de Toledo, João José Corrêa, Samuel de Castro Neves, José Pessoa de Aguiar, Fortunato Losso Netto, entre outros. O adolescente Manoel Gomes Tróia ouve falar desses nomes, da mesma forma como Piracicaba ouviu falar de personalidades lendárias, médicos como Alfredo Cardoso, Honorato Faustino, Oscarlino Dias, dr. Preto. E, quando ingressa na Faculdade de Medicina, em 1950, em Sorocaba, não sabe, ainda, o que pretende, mas carrega, fortemente, a convicção de que a medicina é serviço e sacerdócio. Mas os modelos de atendimento estão superados e, não fosse a benemerência de médicos e das Santas Casas, a tragédia humana seria ainda maior. Forma-se em 1956, escolhe a otorrinolaringologia, trabalha no SESI, retorna a Piracicaba apenas em 1959. Está preparado para vencer obstáculos. O Brasil de Juscelino Kubitschek e a Piracicaba de Luciano Guidotti mostram- se terra fértil para quem busca o sonho.

Tempo de mudanças

Em 1950, quando Manoel Gomes Tróia vai estudar medicina em Sorocaba, o município de Piracicaba contava 87.835 habitantes.3 O Brasil é um país doente, sob estruturas ainda mais paternalistas do que as do final do Século XX. Quando retorna, em 1960, o município saltara para 115.403 habitantes.(Na foto, em 1951, a primeira turma da Faculdade de Medicina de Sorocaba. Tróia é o primeiro, agachado, à esquerda.)

4 As transformações urbanas tinham sido intensas. Mas, quanto à saúde,

as pesquisas são melancólicas. Em Piracicaba, há um retrato mínimo do Brasil, refletindo o que também ocorre em São Paulo. As principais causas de

mortalidade são senilidade, causas mal definidas e desconhecidas (24,55%), seguidas de gastrite, duodenite, enterite e colite (9,64%), doenças arterioscleróticas e degenerativas do coração (5,72%) e outras.5 Tendo sido quase que totalmente remodelada urbanisticamente durante a primeira administração do prefeito Luciano Guidotti (1955/59), Piracicaba vê a zona rural transformar-se. O sucessor de Luciano, Salgot Castillon, dá ênfase especial aos bairros periféricos, levando eletrificação e telefonia à zona rural, construindo estradas municipais. É exatamente na zona rural, no setor agropecuário, que, em 1960 e segundo o censo, ainda está a maioria dos trabalhadores de Piracicaba, 57,3% das 21.051 pessoas em atividade. No campo da saúde, no entanto, há deficiências consideráveis, especialmente

para o trabalhador que continua assistido pelas caixas de aposentadorias e pensões, transformadas em institutos, os IAPs. A diversidade de institutos,as crises políticas e a endêmica fragilidade econômica do País não permitiam maiores sonhos em favor da saúde. Começaram a surgir entidades privadas, cujos serviços, no entanto, passaram a ser severamente criticados. Entre os trabalhadores, forças novas se uniam em torno de uma das poucas instituições capazes de acolher as reivindicações dos mais humildes e dos trabalhadores: os sindicatos. São eles que se mobilizam, que buscam soluções, que tentam prover as deficiências do Estado e dos municípios. De um lado, o assistencialismo e a benemerência; de outro, a luta pelo direito à saúde. Mas não apenas trabalhadores e as classes mais humildes buscavam soluções. Desde 1913, os médicos piracicabanos buscavam organizar-se em associação, quando se criou o “Centro Médico”, por iniciativa de José Rodrigues de Almeida. Em 1924, liderados por Coriolano Ferraz do Amaral, os édicos fundaram a Sociedade Médica de Piracicaba. Em 1931, surgiu um Sindicato Médico. E foi o quase venerado dr. Lula quem, enfim, conseguiu reunir a classe médica em torno da secção Piracicaba da Associação Paulista de Medicina, em 19 de janeiro de 1950, na sede da LBA (Legião Brasileira de Assistência). Essas buscas e esforços por encontrar caminhos sofrem o impacto do movimentomilitar de 1964. E, então, as estruturas são atingidas. Os velhos institutos de aposentadoria e pensão foram unificados. Em 1966, surgia o INPS (Instituto Nacional de Previdência Social) e, com ele, novos e profundos questionamentos. Tempos de confusão e de transformações. É nesse mesmo ano de 1966 que o jovem médico Manoel Gomes Tróia é eleito como presidente da Associação Paulista de Medicina, secção Piracicaba.

Uma política médica

Se não procurou confusões, foram elas que procuraram Manoel Gomes Tróia. Inquieto por temperamento, inconformado, com angústias sociais e sentimentode classe, o jovem médico foi convidado a trabalhar no Ambulatório da Santa Casa de Misericórdia pelo respeitado dr. José Pessoa de Aguiar. Eram tempos de expansão e de participação mais decisiva da comunidade junto àquele hospital. As famílias Dedini e Ometto, especialmente, contribuíam para o desenvolvimento da Santa Casa, patrocinando empreendimentos como a Maternidade Amália Dedini, o Pavilhão de Psiquiatria Pedro Ometto. A vocação para o atendimento aos desvalidos permanecia intata. E a Santa Casa de Misericórdia de Piracicaba, em meados dos anos 60, continuava sendo considerada uma das mais equipadas do Estado de São Paulo.

Em torno da Santa Casa girava a formulação da política da classe médica.

Tratava-se, até mesmo por sua existência mais do que centenária – fundada em 1854 – de um nicho tradicionalista. Ao trabalhar no Ambulatório, como otorrinolaringolista, o jovem Manoel Gomes Tróia se deparava com o estilo firme e decidido do então provedor, dr. Nelson Meirelles, homem de ação mas conhecido por sua maneira franca e, às vezes, áspera de dizer e de fazer. Meirelles e Tróia se desentenderam ao primeiro encontro. E seria mais um dos muitos atritos que o temperamento exacerbado de Manoel Gomes Tróia despertou.

Mas era, reconhecidamente, um líder que surgia na classe médica. E essa liderança não passaria despercebida aos dirigentes da Associação Paulista de Medicina,da secção Piracicaba. O jovem médico punha-se, abertamente, em defesa da classe, trazia idéias novas, não tinha receio de enfrentar as restrições impostas pelo governo militar. E uma delas era a que mais provocava a indignação de Manoel Gomes Tróia: a opressão que, segundo ele, o INPS exercia em relação aos médicos. Para enfrentá-la, Tróia resumia em poucas palavras o que se tornaria como que uma filosofia em defesa da classe médica:

– “Médico tem que ganhar por produção!”

Essa ousadia fez com que fosse convidado a participar da APM-Piracicaba já na administração do médico Alcides Aldrovandi e, depois, na de Galaor de Araújo Filho. Recusa-se, por questões particulares, mas, em 1967, é como que convocado por seus companheiros e se elege presidente da Associação Paulista de Medicina, Regional de Piracicaba. Brigando com o INPS, enfrentando oposições, Manoel Gomes Tróia passa a participar mais ativamente da política médica e nunca mais iria parar.

– “Gostei da coisa…” – fala, sem esconder que, nessa luta, encontrou a sua vocação para a defesa da classe e o atendimento da população. A palavra-chave passa a ser “cooperativismo”. E Tróia começa a defender uma tese que não o abandonará em relação à Medicina: “a socialização é irreversível.”

 

1 CAMBIAGHI, Oswaldo. Medicina em Piracicaba (contribuição à sua história). Piracicaba: Jornal de Piracicaba, 1984.

2 Idem.

3 IBGE. Censos demográficos. 1940, 1950, 1960.

4 Idem.

5 Anuário Estatístico de São Paulo. São Paulo: Departamento de Estatística, 1972.

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